lunes, 18 de abril de 2016

Controle remoto, minha gente

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Atendi a intimação. Entrei no prédio do Bureau do Distrito Federal intrigado, afinal que diabos queriam comigo? Fiz tudo direito: relacionei os modestos bens adquiridos durante a vida – todos os que estavam no meu nome, paguei uma carrada de dinheiro, com correção monetária, juros e multa. O guarda-livros insistiu para que eu regularizasse apenas os últimos cinco anos, chegou a ser insolente. Ao dispensar os conselhos do ladrãozinho de gravata esclareci que eu nunca soube fazer as coisas pela metade.


Foi a primeira e última vez que apresentei Declaração, de rendimentos com ou sem origem.

Como abatimentos eu havia considerado somente as doações e os dependentes. No formulário, como único elemento digno de nota, tinha a observação que escrevi abaixo da assinatura: “Senhor Collor, não faça como o Sarney, aplique a grana direito”. Eu sou pelo direito, e o homem me convenceu.

Depois de um chá de banco, sentei na frente do indivíduo. Ele disse:

- O senhor não se preocupe, queremos apenas alguns esclarecimentos sobre as doações e os dependentes. O restante está correto, foi acertada a sua decisão de pagar os atrasados, pois vamos dar início a uma devassa.

Interessei-me.

- Que ótimo, meu amigo, quer dizer, então, que os grandes empresários e os políticos, todos os que tem bilhões enrustidos no exterior, estão com os dias contados? A moçada lá da cadeia vai adorar ter essa gente como companhia... A navalha vai cantar.

Ele ficou sisudo, certamente para evitar que eu continuasse tomando aquilo que ele pensava ser liberdades. Disse:

- Quem for pego, irá. Mas, vejamos...

Abriu a minha declaração. Começou a cantilena:

- Doações a creches: somente serão válidas se o senhor apresentar a documentação... Nem consta o CGC...

- Que CGC, cidadão? Desde quando creche caseira, na periferia, tem registro?

- É a lei... Tem mais: distribuição de cesta básica em vilas também não pode, infelizmente. Veja bem: não estou dizendo que o senhor não realizou as despesas, é que existem condições e limites, o seu contador não viu isto?

- Ver ele viu, seu doutor, mas era pago para não ver nem discutir, também tenho os meus limites...

O indivíduo achou que eu estava brincando, sorriu. Muito engraçado, o fiscalzinho. Continuou a brincadeira, lendo a relação de dependentes, em voz mais alta que o necessário:

- Maria Helena Mendonça, nascida em 1º de setembro de 1963; Regina Lemos, 6 de novembro de 1969; Vivianne Moreira, 5 de janeiro de 1972; Karina Martins, 10 de março de 1973; Dione de Jesus, 8 de julho de 1973; Jucilene Quiroga, 16 de dezembro de 1973; Sonia Sem Nome, sem data...

Aqui ele esforçou-se para não rir. Notei que os seus colegas a toda hora passavam diante da porta, espiando para dentro. Continuou:

- Luciana Dal Vitta, 9 de abril de 1974; Vilma Conceição da Silva, 24 de dezembro de 1974. Estas pessoas estão arroladas como irmãs. Agora as suas filhas: Carla Mendonça Luna, 11 de novembro de 1985; Márcia Mendonça Luna, 18 de janeiro de 1987; Vera Lemos Luna, 16 de outubro de 1989; Zilda Luna, 21 de outubro de 1989; Lunera de Jesus Luna, 15 de fevereiro de 1990; Marta Sem Nome Luna, 29 de junho de 1990; Cláudia Dal Vitta Luna, 13 de novembro de 1991. Ufa...

- Ufa o quê? Sei que esqueci de botar algumas.

Olhei sério para o sujeito. Somente então ele deu-se conta de que eu não estava gostando do negócio.

- O senhor me desculpe, mas... o problema... o problema é que suas irmãs tem nomes diferentes, e os nomes das suas filhas correspondem, com uma ou duas exceções, aos nomes delas...

- E daí?

- O senhor deverá apresentar as certidões de nascimentos das filhas, além de comprovar que as suas... irmãs são realmente dependentes.

Entendi: eu ia me incomodar. Esses caras são estranhos, não se flagram. Falei:

- Não vou trazer nada, não, meu amigo, mas gostaria muito de saber quando o senhor ganha, para ficar enchendo o meu saco, acaso tenho cara de marajá? O senhor já investigou as contas dos banqueiros, dos empresários, dos malditos políticos, que só agora sei que não passam de ladrões, do presidente do Congresso para baixo?

- O que o senhor quer dizer com isso?

- Nada de especial. Ah, o senhor já parou para pensar de onde sai a grana que uns e outros usam para pagar resgate em sequestro, ou para mandar de bilhão pra fora do país?

- Está querendo me ofender?

- Nada, esquece. Vamos em frente: o que é mesmo que o senhor deseja de mim?

- Bem, o senhor terá que refazer a declaração, retirando as deduções que não preenchem os requisitos. A diferença de imposto não será grande, perto do que o senhor já pagou.

- Bem, “seu”...

- Fernando Gusmão.

- Pois é, seu Fernando, não vou mudar nada. Acreditei no presidente e declarei tudo, é tudo verdade. E declarei porque torço para que ele consiga melhorar a vida do povo – dessa gente sofrida como eu, que alguns desgraçados sempre teimam em prejudicar, das outras irmãs que não conheço, das outras crianças... Não, não vou mudar nada.

Ele fechou os papéis, encerrando o assunto. Disse:

- Doido ou não, o senhor irá receber um auto de infração. Agora retire-se.

Pois não é que o senhor fiscal irritou-se? Falou como se dissesse “Contra a força não há resistência”. Dei-lhe uma última oportunidade:

- Se eu fosse o senhor, “seu” Fernando, não ficaria me ameaçando...

- Pois o senhor vai receber o auto de infração, sim, sem prejuízo de outras sanções. Retire-se!

Ele não entendera a mensagem. Decerto por ansioso que eu saísse, para correr contar aos colegas que havia topado com um maluco. Deve ter rido muito depois.

Saí furioso, aquilo já estava me tirando do sério. Eu deveria ter deixado o maldito guarda-livros explicar direito lá atrás, antes de encher-lhe a boca de formigas.

Quando cheguei na sede telefonei e acertei o contrato para o “seu” Fernando, para matar um fiscalzinho eu tinha quem fizesse o serviço de graça. Ainda irritado acabei dando um tiro na perna do Japa, mandei-o encomendar um quilo de plásticos de Hong Kong e chegou dez, uma fortuna gasta sem necessidade.

Ontem entrei novamente no prédio, atendendo a quarta intimação. Ouvi outro cara pacientemente, sem reclamar, dizendo que o meu processo estava parado devido a uns problemas internos, e toda aquela conversa das vezes anteriores.

Apenas fiz questão de saber o seu nome completo. Desci pelas escadas. Enquanto decidia se o problema interno seria um acidente de carro ou uma queda nas escadas, examinei detidamente as estruturas do edifício. Se me mandarem mais uma intimação, não vou atender, tive uma ideia brilhante.

Chegou a quinta intimação. Mandei o Japa buscar no porão os nove quilos de explosivos plásticos que restaram.

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A ilustração é do Frank Maia.


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