viernes, 29 de abril de 2016

Bruno Contralouco n'A Crônica do Dias

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Acordei de madrugada e percebi que a gripe está me largando, pois senti vontade e pitei um nicotífero na sacada; na volta, ao entrar na sala, joguei um olhar fortão, de paixão, para a garrafa de uísque lá virgilina na estante dos livros, naquela de "de hoje tu não passa, gostosa".

Bem, ia esquecendo que hoje é sexta-feira e já me meti em politicalha. Passo a evitá-la, mas algo que antes postei, sobre os ícones populares do impeachment, me lembrou do Botequim do Terguino, lá no Beco do Oitavo, em Porto Alegre. Aquela turma é um prato cheio.

A mesa 1, ao lado da janela, é privativa dos velhos boêmios, gente de 40 anos para cima, o mais novo tem 40 e o mais velho 75, que são uma das atrações do boteco, muita gente vai ao bar para ouvir os inflamados discursos, rola filosofia das ruas, e ouvir sambas e boleros que ninguém lembra mais. É alguém reclamar que brigou com a mulher e João da Noite canta inteirinha Ninguém me ama, do Antônio Maria, com o Cícero do Pinho caprichando no acompanhamento. O que faz a bebida.

Um caso à parte é o Bruno Contralouco, que com seus 38 anos sempre rouba a cena, o índio é tirano, o nome já diz.

Bem, de modo que na mesa 1, que são duas mesas juntas, só os boêmios curtidos sentam. A rapaziada, moços e moças, se instalam nas mesas próximas. Tem um moleque japa que senta sozinho na mesinha de uma só cadeira ao lado, diminuta, serve de passagem de bebidas – o garçom lá de dentro traz, larga ali, e o garçom do salão leva ao destino -, fica a noite toda ouvindo os papos e canções da turma. O pessoal já acostumou com ele, brincam, mexem com o menino, ele sorri, quieto.

O doido o apelidou de Patroca. “Esta música ofereço pro amiguinho Patroca”, e é Patroca pra cá, Patroca pra lá, isto quando o Contra está espiritado, o que ocorre quase sempre. Chupim da Tristeza um dia o intimou: “Que apelido é esse que foste botar no guri, pô, não tinha outro?”. O Contra disse que era pelas suas feições asiáticas, com o que todo mundo seguiu boiando.

O Contralouco sempre chega incendiando o bar, gritando saudações e dando abraços em todo mundo, tem uma palavra para cada um das outras mesas, é “E aí, meu, cadê aquela morena gostosa do outro dia?”, “E tu, Alemão, o que houve com o Grêmio ontem”, “E essa gatinha linda, cadê o namorado?”, e por aí vai, até que chega na mesa, entornando chopes conta o seu dia, faz questão de saber como foi o dia de cada um, até que, esgotados os primeiros assuntos, olha pra mesinha do moleque e exclama: “Ei, meu fio, já comeu alguém nesta vida? Se não o tio Bruno aqui arranja uma japa pra ti!”.

Saudações e abraços para todo mundo, mas tem uma exceção: uma coroa que senta sozinha no outro lado do bar. Quando faz aquela alaúza toda na entrada olha para o fundo e, se ela está lá, mira o teto e exclama, teatral, de mãos postas: “Ó Deus, o que foi que eu fiz pra merecer isto?!”.

Isto porque ele diz que a viu numa passeata dos coxinhas lá para os lados do Moinhos de Vento, com uma velha camisa da seleção, a 11 do Romário.

Os companheiros de mesa tentam dissuadi-lo, largue o pé da penosa, Bruno, não vale a pena. Ele fica quieto, e não larga. Outro dia Jezebel, Luciano, Gustavo Moscão, João da Noite, Silvana Maresia e outros chegaram a levantar para impedi-lo mas não conseguiram: foi lá no meio do bar e dedicou, sem olhar pra ela, “a uma nazista eleitora da Ana Amélia”, e cantou todinha Lili Marlene, escrachando o sotaque.

Nos últimos tempos a barra piorou. Numa quinta-feira lá pela meia-noite olhou para o japinha e disse: “Ô, Patroca Katapica de merda, outro dia te vi numa passeata também, então acho que pra levar recado pra china tu serve, entregue isto para a advogada sozinha lá no fundo”, e deu-lhe um papel.

O Patroca saiu lépido e entregou. A mulher leu e veio de lá com uma pistola na mão para queimar o Contra, quem lhe tirou a arma foi o próprio Terguino Ferro, que sentiu o drama quando ela levantou mexendo na bolsa. O Terguino engrossou: “Olha, dona Pasquala, faça-me o favor de não vir mais no meu bar”. A mulher foi embora e os ânimos se acalmaram.

A doutora Jezebel foi lá no fundo e capturou o bilhete jogado no chão, voltou e leu para a turma:

“Desprezada: à distância sinto que o seu problema é falta de homem, o que suponho seja pela raiva que carrega no coração, pra que tanto ódio? Eu nem morto, periga me castrar dormindo, mas farei um esforço para convencer o amigo Luciano Peregrino, campeão em transar com certas recatadas e do lar, a encarar uma retardada como a senhora”.

Aí tiveram que segurar o Luciano, queria briga com o Contra, este só ria.


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A coluna A Crônica do Dias, a exemplo de A Charge do Dias, leva esse título pelo seu idealizador, o mestre Adolfo Dias Savchenko, que um belo dia se mandou para a Argentina, depois para o Uruguai, onde vive muito bem. 

(Ilustração: as escadarias da 24 e o bar O Porto, também refúgio dos boêmios, no Beco do Oitavo, próximo ao Botequim)

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