martes, 12 de agosto de 2014

Verás que um filho teu (1/5)

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Em espanhol saio com as brancas: 1. P4R, P4R 2. P4BR, PxP 3. B4B, D5T+ 4. R1B, P4CD 5. BxPC, C3BR 6. C3BR, D3T 7. P3D, C4T. Já perdeu, esta foi de amador. 8. C4T, D4C 9. C5B, P3BD 10. T1CR! Te peguei, filho da puta, ... PXB 11. P4CR, C3BR 12. P4TR... Encurralei o bandido. ... D3C 13. P5T, C4C. Diabos, estou repetindo a Imortal. Se eu tomar o partido das negras na jogada 19 a coisa pode mudar de figura, no fim acaba dando empate. Não fosse a bobagem do sétimo lance. Assumo as negras, Kieseritzki que me desculpe: 19. ... D7C!

O outro tabuleiro, o outro, o outro, arrá, senhor Kasparov, cedendo o empate, apertado de tempo, não é, meu?

(...)


É madrugada e chove, chove, chove, em Porto Alegre. Ando excitado, vi uma mulher na vidraça embaçada. Meu amigo, passo a contar coisas do meu dia a dia, não todas, talvez os antigos sonhos que povoam meus dias e minhas noites, talvez cenas que hoje revejo com os olhos arregalados. Aconteceram mesmo? Estou vivendo em vão? Não sei. Ouça-me.

Quando entrei no armazém do lado, pela enésima vez eles pararam de falar. Novamente o silêncio gelado, de provocação. De soslaio percebi o ruivo barbudo me indicar aos outros com o queixo, troçando. Como sempre, fingi não notar e pedi a comida e a bebida que preciso, estendendo o rol que o funcionário conhece. Enquanto o homem descia as garrafas de conhaque da parede, olhei para fora, absorto.

Aves de rapina! Se o animal tenta fugir ficam torcendo para que morra, querem que desista da fuga, que volte a habitar o cemitério de vivos ao qual pertencem. Aguento porque não gosto de supermercados. Raramente acontece de algum desavisado continuar falando, quando isso ocorre os meus ouvidos captam comentários esparsos, sobre futebol, política, amor e morte, mas apenas fragmentos: procuro me concentrar nos mantimentos que compro. Com eles, as palavras que uso, em geral, são monossílabos, "Obrigado", "Sim", "Não", "Desculpe". Um dia rugi um "Me deixa". É o suficiente para mantê-los afastados por enquanto. Sinto no ar a revolta contida, pronta a derramar, sei da inveja que corrói seus corações. Esperam que o "diferente" cometa um deslize. Mas sou controlado, meu amigo.

(...)

Marion,

Não gosto não é a expressão certa: você odeia supermercados, o luxo, o supérfluo e, admita, os donos. A insanidade de pretender desembarcar desta nave nojenta requer muito cuidado, com a turba sufocada. Você tem razão, a corja de dirigentes nunca ligou para gente como nós, perdidos que somos na multidão de robôs. Com intrometidos comuns não precisaram sequer gastar uma bala, bastou uma ordem para que nos relegassem ao esquecimento. 

Por falar nisso, lembre-se de que você não é mais primário. Onde já se viu chamar juiz de safado, capitalista de corrupto, senador de sonegador (observe que rima), em plena ditadura militar! Seu palhaço, a grande máfia não liga a mínima se você existe. Esqueça isso. O perigo real, físico, vem das sarjetas, dos lobos famintos que espreitam a sua solidão. A sua inconformidade os ofende. Muito cuidado.

(...)


Este conhaque parece água. Qualquer dia destes, quando as equações se revelarem, vou comprar um vidro estrangeiro para comemorar. Ahahahahah...

Eu sei que é covardia / cinco contra um não acontece / liberdade / liberdaaaaade / ainda que tardiaaaaaaaaaa.
Eu sei e superei / isso é tudo lo que quieren de mi / ao deste bolero plagiado, um sopro... loirinha tesuda, sem fiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiim.

Eu canto bem, eu canto bem, eu canto bem! Ahahahahahahahahah...

(...)


Escastelado neste décimo andar, bailando no Lumiére de Piazzolla, reflito se não é o caso de adquirir uma arma. A ti confesso: tenho medo. Creio ser uma boa idéia, outro dia planejo como chegar nos arsenais do câmbio negro. Por ora preciso obter cigarros negros, cansei de fumo em rolo, aqui só temos rubios.

Ah, hoje à tarde encontrei de novo a loira boazuda no elevador. Só nós dois subindo. Parece que continua com medo de mim. Antes apanhei a correspondência na caixa, vi que ela espantou-se ao me ver recebendo cartas. Certa vez colei o ouvido a sua porta e a ouvi falar ao velho: "Esse aí da frente é um pobre coitado, não tem ninguém no mundo". 

Só podia ser a meu respeito, é minha vizinha de frente. Isto porque vão muitos anos desde que evaporei. Sumi. Não ouço rádio, não leio jornais, não vou ao cinema, enfim, desliguei. De televisão jamais gostei, nunca tive. Não sei nem quero saber o que se passa no mundo. Durante estes anos por duas ou três vezes fui assaltado por uma terrível vontade de retornar. Passou.

Tintim. 1. P4R, P4AD; 2.C3AR, P3D... Desta vez eu o pego.

(...)


Marion

Estou muito aflito com essa repentina insegurança. Suportou até agora, não pode soçobrar. É loucura, meu caro, pensar em voltar a ler as opiniões sobre economia expendidas pelos Chacais (o Delfim ainda está vivo, e é camarada da esquerda...), ou a saber das versões que sobrepujam os fatos, ou das caixinhas de sonegação (ahahah), esta é boa. Lembra?, elegiam com o imposto sonegado, mais o dinheiro roubado, depois roubavam e sonegavam mais. Lembra do assassinato em massa promovido por fluticolores redes televisivas? Lembra que as pessoas de mediana cultura desconheciam tudo, à exceção do vil metal? Pois então sente-se para ver o que direi: agora piorou!

Hoje minha carta será mais longa. Que tal discutir o seguinte:

Você já chegou realmente a sentir satisfação com algo que tenha feito, a não ser o prazer dos sentidos? Que saudade é essa? De ter que adquirir conhecimentos que vão se perder no primeiro acidente de automóvel ou na primeira parada cardíaca? De vestir-se como os outros, à americanês, para não ser segregado? De ter que comer as mesmas comidas na mesma hora que todos? De cumprir horários para proporcionar maior gozo a um tubarão? Saudade de ser compelido, primitivamente, a crer em deuses, para encher os bolsos de alguns ou amenizar o medo de outros? De ter de se casar e criar filhos, de construir um futuro imaginário, para que mais tarde os filhos se matem pelos seus bens durante o velório, enquanto a companheira dá a bunda para outro qualquer como se nunca tivesse conhecido o sempre lembrado?

Sente falta das regras de bom comportamento, de moral, de ética, que não são observadas por quem as apregoa e exalta? Esqueceu que a organização da turba foi inventada por seres que representam tudo aquilo que nós, humanos, temos de pior, pelo triste substrato material? Quer viver mentindo aos outros e a si mesmo, admite ser mais um indivíduo vulgar, mesquinho, hipócrita e canalha? Quer pertencer a um grupelho que aspira chegar ao poder como meio de justificar a selvageria, depois tornando-se igual? Quer voltar a ver possíveis Chopins, Beethovens, Piazzollas, pensadores, talentos, morrendo de fome pelas vilas de miséria pelo simples motivo de terem nascido do lado errado? Quer dizer que você é pequeno assim, covarde assim? 

Não, você não é. Você e eu somos livres. Acho mesmo bom que compre uma arma. Sugiro uma metralhadora curta e algumas granadas, não se preocupe por não saber manuseá-las, você é foda, energético, aprende usando. Só não se suicide, não dê esse gosto.

(...)



43. P8C=C++. Ganhei, ganhei, ganhei! Liiiiiiiiiiivreeeeee, nasci como a brisa... Eu bebo de manhã! Eu bebo de manhã! O conhaque é meu e faço o que quiser, derramo na bunda, não é da conta de ninguém. De ninguém!

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