viernes, 15 de agosto de 2014

Quando virei só um retrato

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Entrei na toca da onça. Pintora, sobre isso nada havia me dito. Correu no espaço de luz azulada, telas com pessoas nuas, muitas telas, armou uma luz branca em minha direção e disse: vou te pintar, tire a roupa da cintura para baixo, sapatos e meias também. Epa, a onça é louca, quer me ver nu assim em frio, nem beijo me deu, mas, bêbedo daquele jeito tirei, de lado, um tanto envergonhado, não tenho pau grandão molinho, nem grande duro..., um pudor bobo, a mulher apenas tem manias, louca, vou nessa..., tirei a roupa pensando é para já que ela tira também. 

Em dois tempos tinha a tela onde iria me retratar pronta, e a ela correu alucinada, atirando cores, logo desenhando, pintando, misturando tintas, parando para me olhar, eu só com chapéu, camisa, gravata e paletó. Parou o trabalho: tire em cima também, o chapéu não. Tirei. Agora recoloque o casaco. E lá fiquei só com o chapéu e o paletó azul no corpo, o paletó aberto na frente, como ela ordenou. 

Ela lá longe, uns oito metros, com luvas e tintas, águas, agitada, mexia nuns vasos, panelas, potes, tirava as luvas, voava com as mãos cheias para a tela, ansiosa me olhando, lavava as mãos, recolocava as luvas, em alguns momentos se jogava furiosa na tela que eu não via, logo ela própria estava pintada de muitas cores pelos respingos da orgia: cinza, preto, gelo, marrom... Vermelha na boca, parecia um vampira dessas de cinema, com os olhos faiscando. A mulher é bonita mas é louca, pensei, sempre quis ter uma, uma louca com quem eu pudesse ser eu, e peguei a garrafa ao lado das almofadas e a esvaziei bebendo no gargalo.

Pare assim, com a garrafa erguida! Parei.

Eu só queria transar com alguém, qualquer uma, ela ou qualquer outra. Qualquer uma também não, ela tinha aqueles olhos especiais que não desgrudavam de mim no bar da Rua da Olaria, olhos iguais aos meus, os dela soltando chispas. Com tantos homens de pau duro lá disponíveis, com sorrisinhos e musiquinhas da moda, que a abordavam de dois em dois minutos com essas palavras comuns que funcionam, ela olhava só para mim. A noite toda, eu não queria pegar as bruxinhas da noite, prefiro me masturbar a pegar, e ela não me tirava os olhos. Pegou-me. Que diabos essa doida viu em mim? Estremeci quando com um leve sinal de cabeça me convidou a sair. Vamos para a minha casa, meu estúdio, disse rouca ao nos encontrarmos na saída.


Vai mais para perto, disse me orientando com os braços, deite nessas almofadas. Agora vire para cá, de frente. Logo quando eu começava a ter uma ereção pelo jeito dela se mexer daquele jeito. Havia tirado o casaquinho e a saia, ficou lá de salto alto, calcinha e camiseta. Eu via seus seios pela camiseta branca, mulher de pele branca mas passaria por negra ou morena, como passou na penumbra da boate, a calcinha preta, olhos pintados em preto, carnuda, por alguma razão me pareceu doce, de algum modo crua.

Vire o quê?

A bunda.


Como?

Mostre a bunda, por favor, não me impeça, eu preciso...

Ah, é assim? Mostrei a bunda.

Alguns minutos e perguntei: vai demorar muito, madame? O madame de ironia. 
Não sei, vai, mais uma hora, talvez menos, não sei, não fale comigo, me atrapalha. Agora vire de novo, abre bem as pernas, esticado, agora dobre um pouquinho, mais para cá, assim, o pau ao lado...

E de súbito, quando eu me virava pela décima vez, gritou alto, uma coisa que saiu de dentro: tem medo de altura. E seguiu em fúria sobre a tela. Bebeu mais do que eu, pensei, adivinhou que detesto altura, odeio, é horror dentro de mim, trauma de infância.

Não me oferece mais uma bebida, não me dá um beijo, moça?, arrisquei.

Não... não sei, fique quieto, depois..., preciso terminar. 

Aí meti a mão no bolso de fora do casaco, peguei um cigarro, o isqueiro e acendi. Ela paralisou: Não pode fumar, não pode, e começou a chorar.

Vesti-me com pressa, as calças, enfiei os sapatos, só deixei a camisa, a gravata e as meias, ela ainda paralisada, pranto ensopando o rosto, mão com o pincel no ar, vi que tem mesmo um belo corpo de mulher, média e valente. Caminhei até a porta do estúdio que dava na rua.

Ela enfim correu e me segurou, onde vai? Vou fumar lá fora, se aqui dentro não pode, moça. Afastei-a com a mão enquanto saía. Mal sabe a mulher que cansei de tudo.

Está bom, disse afogueada, vou aproveitar para aumentar a vermelha, mais rubra, sim, carmim, e sumiu lá para dentro.

Enchi disso. Passou um táxi e acenei por acenar, na dobrada da outra ruazinha os faróis me pegaram em cheio. No fundo queria voltar, gostei dela, não sabia o que fazer. Antes de sair do umbral olhei para dentro, vi a tela por um espelho que tomava toda a parede de lá.

Não gostei do meu retrato que ela pintou, não era um Dorian Gray mas tinha uma coisa ruim nos olhos, no jeito, no ar. Ela não me ama, procura um amor que não existe, como eu procurei. 

Entrei no táxi e pedi que me levasse até a ponte do Rio Guaíba. No meio da ponte paguei e o dispensei, o cara me disse são três da manhã, meu, tem certeza de que quer ficar aqui? Sim, vou ficar aqui. Dancei na pista, por milagre sem movimento algum, um silêncio... Ao longe risos de alguns pescadores de um barco que passava, bailando mirei a luzinha sumir em direção ao Gasômetro.


Fiquei sozinho, subi no parapeito, medo de altura, olhei o rio lá embaixo, peguei a arma do bolso de dentro, revi a minha vida que ela pintou não sei como, era feia mesmo, ensaiei um passo de dança, deu certo, saltei e me atirei na cabeça enquanto voava.


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