jueves, 5 de junio de 2014

Ingratidão

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INGRATIDÃO



Na minha família era assim: minha mãe, irmãs, depois esposa e filhas, assistiam filmes americanos, de guerra ou sentimentais. Comédias, de tão rasteiros. O personagem principal, em guerra ou apaixonado, bebia garrafas de uísque e saía, gritava de tristeza e solidão, errante, entrava em inferninhos, brigava a socos, matava até - algum mexicano malvado o provocava, o roteiro sempre igual, “sem querer”, porque estava triste, ele tinha um retrato da namorada no bolso. Negros, nos filmes deles, quando aparecia, eu já sabia: ia morrer. O personagem, de mil caras, era um herói, havia matado famílias coreanas, no derrubar a porta de tramela e lá vai granada, o máximo. Isso antes de correrem feito galinhas, Saigon em fogo, este último filme elas não viram, vieram outros esmigalhar suas cabecinhas. Mesmo sendo humanos, nos filmes que elas amavam só tinha galo. Nunca viram um galo, barbelas e penacho, mas achavam que sim.

Elas choravam de compaixão pelo sofrimento do herói, compreensivas, lindo o ator. Outras pessoas lindas se drogavam pesado, um fiasco atrás do outro, segundo as suas concepções, delas, suicídio à vista, e se suicidavam em cocaína, em esperma doente, sangue contaminado, isso a mim também doía, mas tudo era compreensível e desculpável, os sentimentos da pessoa a levaram àquilo, que pena, e corriam a comprar seus discos, quando cantores, artista morto é lindo. Fotos na parede, quando atrizes e atores. No meu aniversário, nem um abraço.

Maravilhoso era o agenciador de meninas para modelos. Querido era o dentista. Os estupradores donos de creches. Os médicos. Em todos meti uma arma engatilhada no rosto, se não elas estariam perdidas. Uns lixos humanos. O estuprador faleceu sem tocá-las.

Amavam Clinton, Xuxa, Maicon Jékson, Roberto Carlos, Menudos e Caetano Veloso. Médici, Collor e Marília Pera. Amavam todos, uma lista sem fim. A novela da Globo, os atores, as atrizes. O contrarregra, a bunda do Roberto Marinho da ditadura. Nem sonham que mijei no túmulo de alguns, madrugada alta, enquanto os guardas tomavam uísque.

E eu, retrato de alma, desarmado por opção, só lendo uns livrinhos, sem alarde, quase escondido. Eu que buscava lenha no inverno congelado, subindo aquele morro íngreme sem fim açoitado por ventania cortante, resvalando sob chuva, dois passos para a frente e um para trás, costas lanhadas em sangue pelos paus verdes no saco às costas. Eu que depois iria me limpar sozinho, enquanto elas se aqueciam ao fogo, esquecidas de mim, eu que mais tarde ouviria as reclamações da mãe, sobre meu pobre pai.

Eu que saí correndo do trabalho, só Deus sabe como consegui chegar a tempo, da Mauá ao Menino Deus, e levei minha menina ensopando minha roupa e minha alma e o táxi em sangue, dela mas meu, era meu, meu, meu, eu que na corrida de volta peguei uma gravata para mentir, e menti no Pronto Socorro que era fazendeiro rico, para que a operassem não importa o preço, eu ira matá-los se não, ah, iria sim, a equipe de filhos da puta era particular, só pagando na frente, emiti o cheque sem fundos. Eu que fui tão sincero depois ao falar com os canalhas: se ela morrer, vocês morrem todos, família junto, seus ladrões. Eu que era ainda um menino. Eu que paguei com vinte férias e vinte 13ºs adiantados aquele preço. Eu que matei um deles, para me defender, o anestesista, desbocado, sujo, que só pensava em dinheiro, violento, mil processos nas costas, eu que o Presídio Central tirou da cena de morte, ele lá, arma de fogo ainda na mão e com a jugular arrebentada pelo meu punhal, porque eu era amigo das horas ruins, de visitar presídios e asilos e tudo de ruim. As noites que fiquei acordado pensando naquilo depois, sofrendo em silêncio, enquanto elas me miravam daquele jeito...

Alguém tocou numa delas? Lá ia eu, sem aviso, noite fechada, conversar com o valente a quem no mês anterior juravam príncipe querido. No Rio Grande do Sul nunca foi difícil. Quando São Paulo ou Rio de Janeiro, tinha de ser de avião. A arma ia de caminhão, um dia antes. Era tocar a campainha, engatilhar e perguntar, com calma, seguro: me conta, seu, que conversa é essa de ameaçar minha irmã, ou minha filha? Os caras ficavam pior que o Maicon Jékson pálido em caixão de ouro de tolo. Salvo duas vezes em trinta nunca precisei atirar, os valentes se modificavam, desculpe, seu, pelo amor de Deus. Aos dois eu até respeitaria, não fossem drogados que reagiram, mandei-os para o inferno. Aos outros, sobreviventes, me dá nojo de lembrá-los ajoelhados, sem coragem de sequer erguer a cabeça e ver meu chapéu a meio-nariz, e mirar meus olhos de nojo de covardes como eles.

Eu errei em algumas, como ao sair de um apartamento desses e no susto, alguém parecia voar em mim, atirar. Era só um maluco que queria me cumprimentar por justiçar os aliciadores de modelos. Errei mas consertei: me atrasei para a fuga, o furgão lá embaixo já acelerado, e o levei para um hospital. Salvamo-nos todos.

Mas não sou santo, e declaro, ante o juízo Maior, que senti prazer num pecado. Pequei, mijando. É quase como um orgasmo, e o quase tem vantagem porque é perene na alma: fazer uma coisa boa sozinho. Nunca intimidar ou machucar as pessoas, o que é isso, Deus nos livre. Mas fazer uma coisa boa sozinho, e nunca contar para ninguém. O contentamento é maior se a gente nunca conta, é único, arde o peito de paixão. Nunca contar. A solas. Eu lá, pulando o muro do cemitério, quatro da matina, e enquanto os guardas eram entretidos com uma garrafa, paguei uma alemoa putianga, ela nunca soube o porquê, para se fazer de viúva chorosa que passava de madrugada, roupa preta mostrando tudo, para dar a garrafa de J&B para os guris milicos da guarda, e enquanto bebiam, ela mentiu que voltaria, eu com a maior calma mijei no túmulo do general torturador, bota mijada nisso, antes me preparei, tomei seis cervejas de 600, saí de lá pensando a cerveja deve ter molhado a caveira do bandido.

Essa foi a única maldade - será que foi maldade? - que fiz, e nunca contei a elas nem a ninguém. 

Eu, o filho, irmão e pai, que tudo dava, a todos socorria, que nem maconha experimentei, que para matar um semelhante só se em defesa delas, eu... ao menor desejo, se fosse ao bar da esquina beber com simples meio-amigos, conversar, ou namorar, aquela moreninha me olha..., acender as luzes de casa, aquele escuro era assustador, tentar viver... ah, não, eu era um criminoso, onde já se viu, seus olhares de desprezo me imobilizavam. Eu que não tive infância, recebia olhares severos se tentasse dançar sozinho em casa, a rumba comendo no apartamento de baixo. Se eu errasse, cometesse mesmo um errinho de nada, esquecer de tirar o lixo, de lutar pela comida, o que fariam comigo?

Soube depois. Queriam que eu morresse. Por quê?  O que fiz de tão ruim, se dei a vida por elas? Algo de ruim devo ter feito.

Por eu ler livrinhos de gregos enquanto elas amavam os datenas da época, ou desfiles de moda? Nunca impedi nem critiquei, eu só queria sair para não ver o escuro e suas predileções. E saí. 

Será que o ódio foi por isso, por eu ter-me distanciado, em sonhos de querer ser um rapaz culto, um pouco, ao menos? Não pode, isso não. Mas recordo que riram muito, zombeteiramente, quanto falei de Kant, eu tentando decifrar. 

Pior foi a mãe, quando dei um tempo nos antigos, saí da Filosofia, da Antropologia, da Geografia, Matemática, História, para mim é tudo a mesma coisa, conexão natural, e entrei no Direito... para mim foi como se estivesse lendo os anteriores, mesma coisa, terminei de ler um livrinho pequerrucho e fui tomado de emoção, corri para a sala e declarei o final: 

"Ocorrendo, destarte, empate na decisão, foi a sentença condenatória do Tribunal de primeira instância confirmada. E determinou-se que a execução da sentença tivesse lugar às 6 horas da manhã da sexta-feira, dia 2 de abril do ano 4.300, ocasião em que o verdugo público procederia com toda a diligência até que os acusados morressem na forca". ¹

Eu chorando, fosse hoje, quando passamos do carbono 14, o autor teria colocado 6 de abril, dia em que mataram o comunitário Jesus Cristo. O ar de desprezo, enquanto pegavam bolsas para sair, me imobilizou, fiquei lá na sala, livro na mão, tremendo por dentro, murmurando “os exploradores de cavernas”.

Aí buscaram moleques fora. Aguentei berros pela suspeita infundada de extraviar um gato, berros ao pai, eu, atrás o olhar mortiço do cúmplice, que odiava a si mesmo desviando ao seu semelhante, esse não importa, mais um, ela sim, dentro de minha casa, um elemento com quem nunca conversei, quereria me espancar? Era crime levantar a voz ao pai, mas aquilo foi pior, traição vil aos berros, com terceiros sem mundo assistindo. A vida cobra caro. O sujeito pegou gosto, gritou, todo macho, gritou comigo, devo ter feito equivalente a ter matado alguém, mas não recordo, nada fiz, para receber algo assim tão grave nem para receber nada de ruim, o que fiz foi viver para elas, ao preço de desperdiçar a minha vida.

Onze da noite e a sábia, só rindo, cantante sob chuva implacável, vento gemendo, numa noite de breu de uma segunda-feira, inverno, solita, cigarro na boca, erguendo a gola do casaco e apertando o passo, uma luzinha cá e outra lá adiante, ela soçobrando à ventania, dançando com um par desconhecido ao se deslocar decidida do Mercado Público para o Chalé da Praça XV, lá fica aberto até mais tarde, tem bebida, se alguém pedir eu canto, depois pedirei desculpas por ter chorado.

Os caras fazem boleros com nome de Insensatez, que você fez, coração mais sem cuidado, fez chorar de dor, o seu amor, um amor tão delicado..., cantado em espanhol é mais bonito, e o homem lá do fundo, 38 anos, 45 ou 60, solito no escuro do bar, coração em pedaços, pensa e morre em ingratidão e não sabe lidar com isso, uma surpresa horrível, a ingratidão, quando não espancamento moral e físico, o Super Homem se transformou no Pinguim, o Sargento Garcia prende o Tarzan, na sua cabecinha da tevê alienígena. Onde errei?

Filha é complicado. Calma, meu irmão, tudo passa, deixa chover, chuva lava esperma, rostos, tapas, silêncios, berços, fotos, velas de aniversário, sorrisos, sacrifícios, gestos, gritos, gatos, mentiras, fraquezas, lava febre em noite alta, lava a boneca que compraste deixando de pagar o condomínio em segredo só teu, lava tua arma com que a defendeste indo ao ataque, lava sangue, ossos, chuva tira o horror da flor da terra. Chuva lava lágrimas doídas, derramadas sentado na cama no escuro, sufoca os teus gritos de pranto, lava o sal que ardeu na alma, lava noites sem dormir. No fim a enxurrada de lágrimas leva tudo para o fundo, adubo.

Enquanto estamos aqui, sorríamos, de nada adianta fazer diferente. Olhe o céu, vai chover amanhã. Depois da chuva que tudo leva, um dia ela aparecerá, numa manhã radiosa: "Oi, pai, desculpe, vim porque tava com saudade do senhor. O senhor tinha razão, me perdoe”. Até lá já morri! Haja chuva, nunca virá! Eu errei, em viver só para ela, esqueci da minha vida! E agora isto... me forçando a pegar em armas.

Assim me torturei por doze anos.

Elas eu deixei, o outro não. Vou sumir, um dia volto para cobrar o pobre homem, sozinho em rua escura. Estou velho, com sequelas no fígado, câncer recidivo, talvez este agora me vença, sem dinheiro para um exame de sangue, dias contados, uso óculos, mas aí é que ela me horripila, a burrice, a maldade inconsequente, bruta, a falta de livros, a infeliz por quem capei os melhores dias da minha vida. 

Repugna-me o sangue, o meu, que empurrei para dentro daquele corpo. E ao fim e ao cabo, de quem será a culpa? Quem assumirá? 

Eu. Nas ruins eu vou na frente. É de lei.

Foi num desses dias que desapareci. Dormiram e me esgueirei, ganhei a rua e saí correndo espavorido. Já longe, muito longe, no caminho escuro dos trilhos que circundam a mata, parei, abri a carteira, febril, alucinado caí de joelhos na linha, pensei em ficar ali, ajoelhado, esperando o trem passar por cima de mim, mas o que fiz foi rasgar aos gritos doloridos de solidão expulsa as fotos delas, com ódio da horrível ingratidão. Foi a mais velha, foi a pequena, duas de cada, a da mãe. Depois rasguei os documentos, a carteira vazia joguei longe, dinheiro não tinha, eu estava doente e sem dinheiro. 

Como clandestino peguei um trem que passou, depois outro, e outro, e morri para elas. Porém a roda do mundo não roda como a gente quer, tranca quando queremos que ande, destranca quando já estamos quase conformados à paralisia. Milagres acontecem, e aconteceu o terceiro milagre da minha vida: sobrevivi. 

Tornei-me Marion José, mudando pouco a grafia do meu nome, ainda sem saber do Quincas Berro D'Água, nenhuma surpresa tive quando conheci os parentes do personagem, só chorei muito num quarto de pensão. 

Limpei-as, dei comida, beijei-as na dor, acalmei-as em seus desesperos, curei seus males, e elas seguem lá, querendo me matar, matar ao único ser honesto que conheceram. O filho, o irmão e o pai. 

Não vou voltar, morreram todas, exceto as parricidas. Para voltar seria só por um motivo: matar a um moço que levantou a voz comigo. Mas para quê? Para tornar-me, enfim, um criminoso? Sufoco a revolta, tomara que chova, a noite está linda, preciso de água do céu, minhas plantinhas gostam, eu também. Vou rejuvenescer. Nada tenho a cobrar, se me devem. Nada me devem, quito a conta. 

Pensam que estou morto, talvez lancem imprecações aos céus, na falta de uma lápide onde cuspir, me acusando de... não sei. Lamento não poder ajudá-las amanhã ou depois, já estarei em outra.

É noite e a chuva desce forte aqui em Rocha, sem vento, chuva reta, potes, cântaros, derramada, uma delícia, a canção da natureza que mais amo, os pingos me pegam nas pernas no avarandado, deve estar batendo água também em Montevideo. Penso em Ariana Comesaña, que nunca vi. 

Tiro a camisa, medo que acabe logo o concerto de pingos dessa orquestra de amor, e deito no gramado da frente da minha casinha, ao deitar já ensopado, ah, água do céu. O rádio diz que na Argentina é demais a inundação. Alguns pobres morrerão em La Plata.

Soledad Pastorutti começa a cantar, com Horacio Guarany, Nada tengo de ti. A chuva aumenta.

Que Deus me perdoe pela ausência. Que Deus me perdoe pelo que não sei.

Olhando o céu, a chuva quase me cegando, olhos bem abertos vejo o corisco. Temo por elas, tremo de medo. Que o raio caia em mim, agora, mire em mim, meu Deus! Cobre de mim o que me fizeram, liberte-as.

Temo que elas um dia se matem, ao colher.


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(A obra que ilustra o texto é de Nani Lucas, especial para o conto, como todas que bolou para o livro "Um amor em Porto Alegre")


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