viernes, 2 de agosto de 2013

De montarias

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Quando vi, ele estava parado, me olhando firme. Meneou a cabeça - notei a estrela branca na testa - e escavou o chão. Pelos arreios, era argentino. Enroscadas no laço longo, as chilenas de prata.

Fogoso baio, com uma cola que me lembrou a cascata. O tempo parou: eu extasiado admirando o animal e ele esperando. Depois foi saindo, a passito. Lá adiante iniciou o galope e desapareceu por trás de um capão.

Eu, guri, de dentro do açude, com a água pelo peito, fiquei pregado olhando na direção por onde sumira, com a nítida impressão de que ele me convidara a montá-lo. Mas, que diabo - pensei -, como poderia sair pelado e montar num cavalo de sonhos como aquele? E o dono?

Mais tarde, já moço, me certifiquei deste meu jeito: para namorar, ela teria que me olhar espichado um milhão de vezes, e só a mim. Certos desafios não aceito nem passo a cerca de campo alheio.

Aconteceu novamente, quando já era fraca a lembrança do baio que se fora. Outro apareceu, descendo a trote a coxilha. Eu estava solito no campo, desatolando um boi. Desta vez não chegou a parar, mas passou devagarito, com a prata do basto brilhando ao sol. Pareceu-me um baio malo, interesseiro. Deixei-o ir-se, sem largar da lida, ignorando o convite insistente que sentia no ar.

Aí entendi que sou mesmo um gaudério difícil, seja por tímido, orgulhoso ou desconfiado: só monto quando quero, e não así no más. No dia seguinte recusei a proposta do patrão para assumir como capataz, apesar dos animais e da sua filha mais velha. Botei no ombro a minha mala de garupa e fui embora de a pé porque nem cavalo tinha.

Rodei mundo, de estância em estância, sem saber direito o que procurava. Sobrevivi e ganhei alguma fama, pelas mãos fortes, por não ter dono e por aporreado. E pela minha adaga.

Outros baios passaram, e eu quieto. Segui no rastro de algo... nem difícil, nem fácil, apenas... natural. Um dia tomei como amásia uma china desgarrada, que me disse ter sido perdida pelo filho do patrão. Custei a perceber que a história estava mal contada. 

Eu não compreendia o seu capricho pelo luzeiro da cidade, ela não entendia esta mania que tenho de não aceitar nada de mão-beijada. Um convívio de silêncios. Certa noite, ao retornar de uma tropeada, de longe divisei o rancho sem o lume do candeeiro. A escuridão levou a Laurinha.

E hoje, depois de camperear em muitas querências, sou posteiro no recanto mais longínquo de uma fazenda. Não conheço o dono, mas sei que é um político afamado. Um peão, de passagem, me disse que ele sabe quem eu sou, corre que teria perguntado: "Como vai o Melenas de Prata, que há anos está lá no fundo?". 

Deve me conhecer pouco, pois nesta semana, depois de três dias à cavalo para prestar contas, quando tudo já estava acertado, o seu capataz, com ares de dono, mandou alguém me dar um metro de fumo especial, amarelinho. Recusei. Ele primeiro achou graça, depois se fez de contrariado: "Mas então, seu, recusando presente do Dr. Souza, que é quem sustenta tudo aqui?". O homem queria morrer.

O Rengo Velho, que de muitas andanças me conhece, notou e se meteu: "Não ligue, seu Pedro, o senhor é novo aqui, ele é assim mesmo". O capataz ainda resmungou: "Bueno, se ele gosta de deixar o cavalo passar encilhado...".

Voltei sem dar adeus ao Rengo, para não ouvi-lo dizer de novo, manso, com a autoridade de velho, que das madrugadas que passamos eu não aproveitei o sereno. Assoleei o matungo, pensando num certo cavalo de prata, para mim que aproveitei a Lua.

E agora, aqui na frente do rancho de pau-a-pique, mateando e tragueando, remôo a vida gaviona. Será que fiz mal em não montar os baios fáceis, contrariando a idéia de todos? A Laurinha estava certa? O capataz de botas lustradas está certo? Não, não se monta um cavalo encilhado só porque está passando, para não se tornar propriedade do dono dele.

A mim, estar a solas na imensa noite do pampa é o bastante. Gosto assim, de ver a Lua sumir por detrás das nuvens. O sereno meu chapéu apara. Acho que entendo... Oigalê! Deus meu.

De pronto e calmo, resolvo que não vou mais descer as escarpas, onde há muitos anos tento laçar, em vão, o baio de infinita prata, que cavalga bravio e livre pelas campinas. Não devo, não é... natural. Ele jamais aceitaria ser domado, eu teria  que matá-lo.

Somos iguais.





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