sábado, 24 de agosto de 2013

Não vou mais

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- E aí, Baixo, já resolveu a data do teu suicídio? - perguntou Jussara do Moscão, provocativa. Gustavo Moscão, ao seu lado, começou a rir e pediu uma cerveja ao Terguino.

- É como falei outro dia, claro que vou me mandar, mas antes tenho que terminar uns servicinhos aqui na Terra - respondeu Clóvis Baixo.

Aristarco de Serraria ponderou, sério:

- Olha, Baixo, francamente... espero que você saiba o que vai fazer, isso está me dando nos nervos, ora se matar, é contra a natureza...

- Compre um gato e finja que tem amor - sibilou Marquito Açafrão e saiu correndo para fora do bar.

- Não se preocupe, Aristarco, pesquisei. Farei como os mafiosos da Sicília: banheira quente, só o pescoço de fora, cabeça cheia de vinho e uma faquinha afiada, um corte fundo em cada pulso, a vida se esvaindo, a água avermelhando, sem dor, dormirei no meu sangue...

- Falta o quê mesmo, esses servicinhos? - perguntou Jezebel, com a voz declarando preocupação, esperando uma tarefa impossível, o que parecia brincadeira estava virando coisa séria.

- Ora, comer umas cinco mil mulheres que faltam - adiantou-se o Contralouco. - Come as cinco mil e se despede, vai falar com o tal de Deus... Claro, comer uma vez só não tem graça, como ele mesmo disse, o negócio começa a ficar bom depois da segunda, a gente vai se soltando... Cinco mil, vezes cinco noites, vinte e cinco mil. Taí, vinte e cinco mil trepadas e deu. Nos entremeios uns dez mil fogos...

O futuro prefeito de Porto Alegre, o célebre filósofo, querido e amado por todos, João da Noite, até então quieto, pegou a palavra:

- Baixo, ouça o que vou te dizer: segundo meus cálculos, pelo mundo já passaram 120 bilhões de almas, só de bichos autoproclamados "humanos", quanta presunção, animais que matam e depredam seus iguais. Some aí as almas dos outros animais, esses sim humanos, lá se vão alguns trilhões. Assim por alto, 100 trilhões de almas. É muita alma, meu chapa. Mas se encontrares com Deus, comece por discutir o tamanho do Céu. Eu tentei esclarecer esse ponto com o Papa Chicão, mas quando telefonei ele mandou dizer para ver se estava lá na esquina. O escravo do Vaticano que atendeu o telefone ainda me xingou por beber de manhã. Pedi pra esperar um pouquinho na linha e botei um bolero pra ele, o Ressaca, do Lúcio Cardim. O putão queria me estragar o dia, aqui ó que deixei. Mas o que eu queria dizer é o seguinte: com tantas almas para cuidar, animais que morreram abatidos sem piedade, você acha mesmo que Deus terá tempo pra ti, acha que vai conceder audiência para uma alminha aqui de Porto Alegre? Acorda, Alice.

Clóvis Baixo ouviu quieto, mas com ar de quem segue firme na idéia de falar com Deus, porém a turma notou que a urgência pareceu diminuir.

- Tá é de bobice, ele vai levar cem anos para comer as que faltam - exclamou o Contralouco.

Entra no bar um gordinho, caucasiano, estatura média, bonito, dentes alvos, sorridente, vestindo uma camiseta do Grêmio, ares um tantinho, digamos, afeminados. Pede um cafezinho e fica tomando em pé no balcão, de papo com o Terguino. A turma acompanha a conversa de lá das mesas centrais. O cara pergunta se o Terguino conhece o Roberto, colorado, 1,80 metros, assim, assado... Terguino diz que não conhece e vai para a cozinha. 

Clóvis Baixo de cara apelidou-o de Gata Prenha. Quando sorvia seu cafezinho, com o dedinho mínimo empinado, os boêmios iam ao céu.

Na volta do banheiro, o Gata Prenha foi surpreendido pela voz do Contralouco:

- Olha, meu, aqui ninguém conhece esse Roberto, mas você topa um baixinho? - disse isso e olhou para o Clóvis Baixo. - Quem olha não diz, mas este dá cinco sem tirar, vai que você consiga evitar que se mate.

O Gata Prenha riu alto depois de um gritinho de dedinhos à mostra, jogou um olhar fervente para o Baixo e foi enlevado recomeçar o papo com o Terguino.

O Baixo armou um banzé de indignação. Aristarco levantou-se e foi em direção à sinuca no salão dos fundos, chacoalhando a cabeça.

Aí entrou no bar a "ex" do Baixo, a chinesa Virgínia, gordinha, olhos rasgados como sempre, mas hoje vestida de vermelho, cachecol branco. Salto alto, a matar. Como por milagre, o ambiente silenciou. Largou o guarda-chuva colorido no cantinho da geladeira dos refris.

Aproximou-se, ficou em pé ao lado da cadeira do boêmio, pegou em sua mão. Ele congelado, sumiu o sorriso.

- Soube que tu vai te matar. Deixa de besteira, Clóvis, eu não aguento mais de saudades, vim aqui para te dizer, quer que me ajoelhe, que diga que sou burra?, um mês sem brigar contigo já foi demais. Vamos para casa, meu amor. Contralouco, depois ele busca a mala na tua casa, obrigada por acolher este doido.

- Só se você sentar e tomar um trago com a gente - murmurou o Clóvis, encabulado.

Cícero do Pinho levantou-se, deixando a cadeira do lado vazia.

Virgínia sentou-se, voltou-se sobre a cadeira e exclamou ao Portuga, recém chegado, às suas costas:

- Ei, Portuga, querido, eu tava com saudades de ti também, me dá um martini seco, por favor!

Enquanto se beijavam, o bar aos poucos recuperou seus ruídos, suas vozes, sua desorganização. Cícero do Pinho arranhou o violão e Luciano Peregrino foi quem começou: "A gente briga, diz tanta coisa que não quer dizer, briga pensando que não vai sofrer, que não faz mal, se tudo terminar. Um belo dia, a gente entende que ficou sozinho, vem um desejo de chorar baixinho...".

Voltou a algazarra de sempre. O Contralouco mira o casal e diz, zombeteiro: "Eu sabia que tu era um cagado, ora me iludir assim, eu já tinha encomendado coroa de flores para o enterro, até ia dizer uma poesia do Augusto dos Anjos quando atirassem a primeira pá de terra. Quero ressarcimento das despesas".

- Deus é paciente, vai esperar, Baixo - disse rindo a profa Ain.

Pela vista de dentro, lá fora chove, chove, chove, fagulhas cortando as luzes da rua. 

Pela vista de fora, por um Deus dos nossos medos que queríamos olhando do alto, bem de cima, vê-se diminutas luzinhas no bar e no Beco do Oitavo, como a cidade encobertos por uma linda noite de sábado.

Bato as asas brancas, enormes, e levanto, já vi, pensa o sonhado observador.

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