sábado, 2 de marzo de 2013

Saudades de mim, que já fui outro

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Bem como dizia o Jose Hernández, em seu Martin Fierro: saudades de ti, que estavas longe; saudades de mim, que já fui outro.

A vida é a ferro.

Ontem entrei no Bar dos passantes, no Café dos estudantes, no Botequim dos boêmios. Na vital comunidade.

Acorreram todos à porta, aos beijos e lágrimas: Salito apareceu, ele voltou. Afrouxei a gravata e disfarcei o que pude a emoção. Fui desarmado e sem escolta. Fiz uma coisa a que sempre me proibi: sentei de costas para a janela. Alguma coisa tinha me dado, o bobo do esquerdo do corpo dali em diante ficou torcido, o leviano. Na memória entra a tigrada das noites cariocas, com Paulinho da Viola: "Ah, coração leviano, não sabe o que fez, do meu...".

Não a vi, não estava, nem dela perguntei, embora eu soubesse que por lá andou, bêbeda, dizendo bobagens. Ninguém me falou nada, ali quem corre menos voa, em humanidade.

Não entrei por causa de tragédia, para beber até esquecer o inesquecível, a bengala, não, não como cantava Nelson Gonçalves: "Entra, mano, que o fulano vai pagar".

Entrei por saudades, porque amo botequim honesto, de pessoas honestas com os outros e consigo mesmas, pessoas que sabem das suas limitações diante do cotidiano de horror, amo as falas, as tristezas, as danças, os espécimes que comparecem, cada figura..., quem diria. As alegrias de bar. Ali ninguém mente, não adianta mentir. Família de sangue é preciosa, mais que tudo, porém muito diferente, não há o "outro", a opinião inesperada, independente e intocável, e o crescimento daí derivado. Mas há que se ter amor, de outro modo a cambada se filiaria aos Gaviões da Fiel ou transtorno semelhante, logo as ruas, não fosse os botequins da camaradagem, seriam rios de sangue. Gavião só se for para as negras deles, como diz o Contralouco, do outro bar, para depois se encher de razão: gavião somos nós, e calçudos, salve, seu Pixinguinha

"Chorei, porque, fiquei, sem meu amor, o gavião malvado, bateu asas, foi com ela, e me deixou...". 

Saudades, acima de tudo, dos companheiros. Quem bebe e quem não bebe, quem fuma e quem não fuma, no mesmo quadrado de mesas ajuntadas. Uma festa. Somos o que somos.

Enchi-me de alegria ao ler somente a apresentação do trabalho de conclusão, e as primeiras páginas, do grosso volume de mestrado de Alex Antropológico, Sociológico no geral, o rapaz sin frontera que é o Rei de Porto Alegre (já lembrado neste blog, em Versos tortos em Porto Alegre), tão jovem e com essa visão... como definir? Só lendo o original.  Com tanta gente para conversar, trocar afetos, não dava para ler tudo, já era onze da noite, as cantantes cantando e me oferecendo músicas, Carlos Silva me olhou na mesa da janela e largou: "Covarde, eu sei que sou covarde, em não fazer alarde deste amor que sinto por ti...". Nina Moreno, a espetacular cantante uruguaia, aos 84 anos, foi buscar na memória um tango maravilhoso de la via portenha, ao final caiu de joelhos em exclamação emocionada. Nina não existe, é de outro mundo.

Se eu fosse da bancada examinadora, leria a apresentação do trabalho de Alex Moraes e daria dez num repente saído do fundo do meu exigente coração. Fim de papo, o moço é fogo, mestre em antropologia, podem dar o doutorado logo. Depois leria a íntegra para aprender. Saudades de Aceguá, por onde nunca passei mas hei de passar.

Revi Mário, que nunca se enrustiu em armário, grande bailarino, para além de pensador, sabe tudo. Lá, de calça de brim, dançando rumba, só Deus sabe como consegue mexer os ombros e músculos parado, aquela tremura de arrepiar. Alguém lembrou de Ivoran Piazzetta, meu "Ivorix", eis que andaram conversando até altas horas no Chalé em frente ao Mercado Público. Eu lembrei do seu karmanguia de estimação, peça antiqua, rara como o jovem dono, vermelho e envenenado, que ia sozinho para casa enquanto o boêmio descansava no banco de trás, o pingo não negava fogo. E a boêmia Dulcinéia de Cervantes, que diz ter enjoado do Rio de Janeiro, das escadas de Santa Teresa, ama mesmo é a Cidade Baixa de Porto Alegre.

O príncipe Sales, meio tocadito, como todos. Schu passou no bar, numa boa, disse que a turma do Botequim do Terguino também anda saudosa. Tantos. Hora destas darei uma passada no Terguino, talvez em março ainda.

E lá mesmo, no bar, vendo os amigos, seus destinos, as mudanças que ocorreram, me veio à mente uma canção da meninice.

Consciente de que não a vi, chorei tudo por dentro. Deixa estar. Está terminando o verão. A vida, não, a gente recomeça, seremos ainda mais felizes no inverno de vinho.

O artista começava assim: 

Hoy la vi, fué casualidad
Yo estaba en el bar, me miró al pasar
yo le sonreí y le quise hablar
me pidió que no, que otra vez será
que otra vez será, que otra vez será,
tierno amanecer, sé que nunca más.

Leonardo Favio, aquele maravilhoso artista, diz melhor, muito  tempo depois:




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