domingo, 16 de diciembre de 2012

Da festa à revolta. Sobre a necessidade de abandonar a didática do civismo

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Por Alex Martins Moraes e Juliana Mesomo
 
Jovens cientistas do mundo, agora fisicamente em Porto Alegre, para gáudio de todos nós. Breve currículo de ambos ao final. Outros textos com fotos ilustrativas no blog Porta Prosas, de onde pescamos este trabalho, AQUI.
 
 
 
As ideias de defender, ocupar, retomar, etc. o que é público têm motivado alguns grupos a intervir em determinados lugares da cidade de Porto Alegre.
 
Estas ações festivas pretendem contestar a forma como as autoridades municipais vêm administrando esses espaços. Os cartazes levados pelos manifestantes ao Largo Glênio Peres, ao Parque da Redenção e ao Paço Municipal denunciam o cerceamento dos seus usos possíveis, sua privatização. Se estes movimentos conseguem identificar com clareza a lógica subjacente ao atual modelo de “gestão” urbana, faltaria ainda avaliar os conteúdos e efeitos das suas próprias práticas de/na cidade.
 
Por detrás das manifestações promovidas parece pairar uma noção mais ou menos abstrata de “espaço público”. Talvez seja justamente o caráter abstrato das consignas que garante, em cada ato, a presença de um público tão heterogêneo –pelo menos à primeira vista. Mas o que é, afinal, o “espaço público” que se pretende “defender”? É algo que realmente existe, como uma coisa que “está ali”? O que ele integra ou exclui? Quem o enuncia, como e para quê?
 
Antes de qualquer coisa é preciso devolver o espaço público ao seu lugar, o de ideologia. Esta é uma postura necessária se não quisermos nos contentar com bandeiras políticas estanques para terminar fazendo o jogo dos urbanistas de plantão, sempre dispostos a ensinar-nos como usar “adequadamente” a cidade. Mas o que significa dizer que“espaço público” é uma construção ideológica?
 
Significa, nada mais, entendê-lo como uma ferramenta discursiva construída para legitimar determinadas formas de apropriação coletiva dos lugares. Assim, quando reivindicamos e nos propomos a defender o espaço público, estamos dizendo algo sobre nós mesmos, sobre as práticas e moralidades que achamos convenientes para fundamentar o convívio social. “Espaço público”, portanto, consiste num conjunto de regras, valores e posturas que pessoas e instituições procuram introduzir no plano do real de acordo com seus próprios interesses e lançando mão de todos os meios ao seu alcance.
 
O primeiro ato da Defesa Pública da Alegria culminou com um desagravo violento à instalação do mascote da Copa do Mundo/Coca-Cola em pleno Centro da cidade. Foi então que a força policial e os meios de comunicação nos confrontaram com a sua própria concepção de espaço público. Para eles as ruas de Porto Alegre são o cenário do encontro entre grupos sociais que, apesar de manter interesses antagônicos entre si, devem manifestar-se pacificamente e argumentar racionalmente, sob a tutela do Estado neutro, capaz de ouvir a todos. Notamos que a premissa fundamental para a ocupação ideal deste “espaço público” era a seguinte: a violência não está permitida e, se usada – pasmem! – pode ser reprimida violentamente.
 
Essa experiência pública de pedagogia policial e midiática nos fez concluir que devemos abrir mão do conflito e da violência, em nome de uma “cidade amável e bem cuidada”. Bem aprendida a lição, depois do episódio do Tatu nos tornamos multiplicadores das práticas de bem (con)viver. Agora vamos às ruas mostrar a todos que queiram ver– especialmente a “opinião pública” – como o bom-cidadão-de-classe-média-(branco)-bem asseado-sorridente pode ser inclusive útil para a difusão dos valores cívicos e a promoção da segurança urbana.
 
No ato de defesa da redenção (30/11/2012), em frente ao Araújo Viana, o que aconteceu foi uma aula pública de civismo: ninguém pensou em cruzar qualquer cerca, limpamos todo o lixo e celebramos a paz social e a endogamia de classe. Até as grades em torno do auditório, razão maior de nosso descontentamento, foram incorporadas ao mobiliário urbano, convertidas num criativo e inusitado estacionamento de bicicletas. No fim das contas, em que ponto a nossa atual ideia de espaço público confronta aquela operada pela mídia e pelo poder municipal?
 
Essa didática do civismo – que ajudamos a implementar com rituais em forma de festas e piqueniques destinados a sacralizar o parque e as grades, a exorcizar a cidade de toda presença conflitiva e a convertê-la, finalmente, em “espaço público” –serve de suporte, ao mesmo tempo ético e estético, que justifica e legitima o que mais adiante se tornarão normativas para a “conduta cívica”. Não é difícil imaginar quem fica excluído desse “espaço público” que estamos querendo instituir, desse “balé cordial de ciclistas sorridentes, de recolhedores de dejetos de animais e de passantes educados, incapazes de jogar uma ponta de cigarro no chão” (Ver Manuel Delgado, “O Mito do Espaço Público”: http://www.goethe.de/mmo/priv/2972847-STANDARD.pdf).
 
A Defesa Pública da Alegria escolheu o formato “festa ao ar livre” para mediatizar sua concepção de“espaço público”, para torná-la concreta, material e vivível. Isto é louvável, já que a festa e a revolta são duas coisas muito parecidas, até mesmo homólogas. O ritual festivo pode conduzir ao limiar da ordem; uma vez ultrapassado esse limiar, as coisas dificilmente voltam a ser como eram.
 
Embalado por cantorias e danças, o esvaziamento do Tatu derrubou o consenso estabelecido em torno da ideia de que a Copa do Mundo era um “bem-em-si” e, portanto, algo indiscutível. As forças necessárias para essa irrupção violenta e transformadora do dissenso foram sendo acumuladas no decorrer da festa, através das interações, convergências, compromissos e engajamentos possibilitados por ela.
 
A festa fez relampejar, ainda que fugazmente, a visão de outra cidade possível, engendrou vida social e transformou as forças da ordem numa frágil alegoria. Neste momento vimos desabar temporariamente a ideia de um “espaço público” que é cenário de fluxo e uso, mas nunca de transgressão, intervenção, quebra, destruição, modificação.
 
Infelizmente, a ocupação da Redenção significou uma nítida inflexão da Defesa Pública da Alegria em direção à apologia do “espaço público” pacificado. Será que o sangue e o gás conseguiram restaurar as regras do “civismo” no seio do movimento? Será que as grades do Araújo Viana impõem mais respeito e legitimidade que um boneco de plástico instalado em pleno Centro? Ambos não são símbolos monumentais de uma mesma lógica de gestão neoliberal e privatista? O fato é que a incorporação da didática do civismo operou para suprimir, no interior deste coletivo heterogêneo, as formas de dissidência subversiva que o discurso da ordem havia rotulado de “violentas” ou “incívicas” – e, portanto, ilegítimas, posto que desmentem ou desacatam o normal fluir da vida pública, declarada amável e não-conflitiva.
 
Enquanto o argumento do civismo e a fé num “espaço público” pacificado forem nosso salvo-conduto para barganhar a anuência da “opinião pública”, podemos abrir mão de qualquer horizonte transformador.
 
A festa será a eterna celebração de um dócil ritual de desacordo, mas jamais se tornará revolta.
 
 
 
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 Alex Martins Moraes: É cientista social. Graduou-se em Ciências Sociais com ênfase em Antropologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Cursa Mestrado Acadêmico em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Atua como pesquisador no Núcleo de Antropologia e Cidadania (NACi) onde desenvolve estudos na área de migrações contemporâneas com foco no debate sobre tecnologias de governo das populações e construção social da diferença. É membro fundador do Grupo de Estudos em Antropologia. Para debates: alexmartinsmoraes@gmail.com
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Juliana Feronatto Mesomo: É graduada em Pedagogia-Licenciatura pela Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Tem experiência com docência na Educação Básica e com a pesquisa em Educação, com ênfase nos Estudos Culturais em Educação. É membra fundadora do Grupo de Estudos em Antropologia. Debates: julianafmesomo@gmail.com

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