domingo, 14 de octubre de 2012

Domingo lusitano, n'A Charge do Dias

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No Botequim do Terguino o absinto caseiro corre frouxo desde às nove da manhã. Os beberantes espalhados em mesas da calçada, alguns de noite atravessada. Os boêmios "aposentados", isto é, os casados, fazem graça dos que chegam estropiados, com aquelas besteiras tipo "E aí, meu, que cara de não comi ninguém é essa?". Os estropiados nada respondem, sorriem amarelo, por causa das senhoras e crianças presentes. Elas riem. Aos que chegam estragados, porém felizes, alegrões, a pergunta é outra: "Contentão, hein, malandro, quando é o casório?", e as mulheres já se interessam, querem saber com quem, como é mesmo essa história... outro constrangimento.

O Contralouco dá um tapa na losna, toma dois copos de cerveja e começa a ditar uma carta para a sua ex-mulher. Lúcio Peregrino é o redator, com e-mail aberto no notibuc. O Contra não sabe falar baixo, de modo que toda a confraria acompanha atentamente, os sentados lá na ponta espicham o ouvido.

"Mirtes. Não vou poder ir ao almoço que tu me convidou. Tou nas Arábias. Tava trabalhando como vendedor de essências pra banhos turcos, que é a sauna deles, e conheci as escravas de um Sultão, umas cinquenta, as tadinhas numa secura de dar dó, aí já viu, fiquei que nem pinto no lixo e andei botando aquilo onde não devia, e o sultão mandou me cortar aquilo, antes de cortarem o meu pescoço. Capei o gato e quando vi tava fugindo por um descampado, um areal que não terminava mais, debaixo de um sol de rachar. Dois dias andando naquele fogaréu, uma judiaria, feito camarão descascando, morrendo de sede na areia, nessas horas não aparece nenhum corno pra oferecer Sprite. O que me salvou foi uma bárbara que bate a língua quando chama os parentes. Não entendi bulhufas do que ela fala, mas ela gostou daquilo que não cortaram, depois tive que dar uns talhos de adaga torta num sujeito que andava arrastando a asa pro seu lado. Tou morando com ela numa toca dentro de um buracão. Já aprendi um pouco do ralabarrala deles, deixei a barba crescer e de turbante dizem que tou a cara do Bin Laden quando era moço. Volto pro Brasil lá por 2.016, se der no jeito. Inté. Contra".

O botequim vai ao delírio, aplausos e vivas, alguns pedem para aumentar a história, mas ele diz que já está bom.

- Se com esta ela não largar do meu pé, vou pra Arábia mesmo.

Acho que é bérbere, e não bárbara, diz Lúcio, e a tua adaga torta é cimitarra, mas vamos dar uma ajeitadinha geral, e recomeça a escrever enquanto fala: "Prezada Mirtes. Não poderei comparecer ao almoço a que me convidaste. Estou na Arábia, até recentemente trabalhava como vendedor de...".

Protestos generalizados, não mesmo, nada de arrumar, vai no original! Assim é feito. Lúcio usa o e-mail que criou para o Contra e lá vai, de contralouco@gmail.com para Mirtes.

Wilson Schu leva uma mesa para o meio da rua, ao lado do tonel cortado. Vai espetar as linguiças e costelas para o churrasco.

Tigran pede para o Lúcio dar uma geral nas notícias. Como sempre só as manchetes, se algo interessar a alguém então vai adiante.

- Lula segue dando para o Maluf, diz Lúcio brincando.

Essa é velha, não me estraga o domingo falando desse merda, protesta Clóvis Baixo.

Falando sério, pessoal, do Brasil não tem nada, só porcaria pra manter o povo dominado, ora quem quer saber se o lutador de UFC - aquilo de dar joelhaço na boca, ganhou ou perdeu? Essa é a manchete do império da Globo. Deixa ver  no mundo...

- Milhares vão às ruas em protesto em Portugal.

Opa, esta me interessa, diz o António Portuga lá da porta.

- Na tarde de sábado teve início a Marcha contra o Desemprego, milhares foram às ruas em todo o país. Porto, Aveiro, Braga, Faro, Beja, dezenas de cidades... Em Lisboa a manifestação engrossou de modo quase espontâneo, com as pessoas que saíram passear aderindo à passeata. Desfilaram ao som de bumbos, com cartazes e lenços brancos, numa caminhada que se foi noite adentro. No início da madrugada de domingo em torno de 20 mil manifestantes ainda permaneciam na Praça de Espanha, onde haviam se concentrado, com a participação de muitos artistas nacionais na pacífica insurgência.

Segue!, exclama António.

Lá, como aqui, os jornais e tevês não divulgam a programação de protestos, claro, os criminosos são eles mesmos..., só contam depois, pela metade, diz Aristarco.

- Tem  razão, Aristarco, mas a internet eles ainda não controlam, então fica no escuro a massa ignara, que é o principal, se não o protesto levaria cinco milhões de pessoas. Deixa ver... O movimento se chama "Que se lixe a troika, queremos as nossas vidas". Entre outras coisas querem aumento do salário mínimo, a redução dos gastos com o elefante - a máquina governamental, e exigem o fim das Parcerias Público-Privadas...

Isso de Parcerias estão botando no Brasil, o nome correto deveria ser Parcerias Caracu, onde os magnatas privados entram com a cara e a gente com o resto..., e os políticos de todos os grandes partidos bem quietinhos..., diz Mr. Hyde.

Filhos da puta, diz o Contralouco.

- Tem nova manifestação marcada para 31 de outubro e greve geral em 14 de novembro.

- Quando chegaram à praça, o poema "Acordai!", de José Gomes Ferreira, foi dito em grego, castelhano, italiano, alemão, inglês e francês. Só depois foi cantado em português.

Diz aí o poema, diz, diz..., pede Silvana Maresia.

Pera, deixa ver...

Lúcio declama:

Acordai

acordai
homens que dormis
a embalar a dor
dos silêncios vis
vinde no clamor
das almas viris
arrancar a flor
que dorme na raíz

Acordai
acordai
raios e tufões
que dormis no ar
e nas multidões
vinde incendiar
de astros e canções
as pedras do mar
o mundo e os corações

Acordai
acendei
de almas e de sóis
este mar sem cai
nem luz de faróis
e acordai depois
das lutas finais
os nossos heróis
que dormem nos covais
Acordai!

O bar inteiro aplaude, com gritos de bravo. Depois da talagada na losninha e de um copo de cerveja, ele prossegue:

- Seguiram-se falas e músicas emocionantes. Mais tarde a cantante Deolinda subiu ao palco e interpretou o que se tornou o hino do "precariado", a canção Parva que sou. Antes que o Portuga peça, aí vai:




António Portuga sentou. Terminou com os olhos molhados.

Bah, eu dava um dedo pra estar lá no meio do bolo, diz o Contralouco.

E quem não gostaria?..., diz Jezebel do Cpers.

Aqui no Brasil é uma droga - reclama Jussara do Moscão, todos se venderam...

Eta povinho, diz o Contralouco.

A pedido dos empinantes, Cícero Bom Cabelo empunha o violão e dá início ao samba, de sua autoria, "Eta inferno bom", com o acréscimo de uma estrofe, rimando algo como estar de ti tão perto, aqui nas noites do deserto, em homenagem ao Contralouco. 

Isso foi o que nos informou Leilinha Ferro há pouco. Agora precisamos sair, para lá mesmo, ao Beco do Oitavo, fazer uma surpresinha e comer churrasco com os amigos. Mais tarde concluiremos com a escolha das charges do dia e outros eventuais acontecimentos.

Bem, 19 h, de volta. Nada como se estar no palco dos acontecimentos. Apesar de quase todos os amigos serem colorados, não se via uma camiseta do Inter. Pudera, depois do fiasco em Goiás. A única vez em que se falou sobre o assunto foi quando o Clóvis Baixo, furioso, pediu o escalpo da diretoria, no que foi seguido pelo Gustavo Moscão, este querendo fazer com os nobres dirigentes o que o Sultão queria fazer com o Contralouco.

A turma escolheu as seguintes obras dos artistas do traço e do pensamento:

Aroeira, de O Dia (Rio de Janeiro, RJ). Aqui Aristarco de Serraria tomou o palavra e defendeu a escolha, chamando de ridículos os doutores do Nobel: "De outra vez deram o prêmio da Paz para o Obama, o chefe do império da guerra. Para não falar do prêmio de Literatura, que agora foi para um canalha, intelectual do regime chinês - como falou o ex-preso político Liao Yiwu, o poeta do massacre de Tianamen". Os amigos foram sensíveis ao apelo do seu filósofo.




A turma se dividiu na escolha da outra obra. Deu 10 votos para a vencedora (27% dos votos), contra 9 para a segunda, 8 para uma terceira, 6 para uma quarta e 4 para a última. A maioria não pode nem ver mais as caras dos personagens. Como, no dizer de Lúcio, "não temos essa patifaria de segundo turno, pois no botequim as pessoas são firmes, mantêm as suas convicções, passando o exemplo pra meninada que vem atrás", vai para o placar: é do Cláudio, do Agora S. Paulo (São Paulo, SP).



Leilinha Ferro se sensibilizou com as palavras do filósofo Aristarco a respeito do Nobel da Paz, e, na sua escolha a solas, ficou com o Dálcio, do Correio Popular (São Paulo,  SP). Walter Schiru, o bairrista, reclamou que a turma só escolhe obras de estrangeiros: paulistas, cearenses, cariocas, pernambucanos, paranaenses, de tudo, menos de gaúchos. O Contralouco mandou que fosse reclamar aos chargistas daqui. Faz sentido.


Nos despedimos quando o pessoal fazia fila, diante do notibuc, para ver a foto escolhida para o Gmail criado para o Contralouco.



(A coluna A Charge do Dias leva esse título pelo seu idealizador, o mestre Adolfo Dias Savchenko, que um belo dia se mandou para a Argentina, onde vive muito bem. Sucedeu-o na coordenação a jovem Leila Ferro, filha do Terguino, quando os boêmios amarelaram na hora de assumir o encargo. Antes eram dois butecos, o Beco do Oitavo e o Botequim do Terguino, que há poucos dias se..., bem..., se fundiram (veja AQUI), devido a dívidas com o sistema agiotário, como eles dizem. O novo bar manteve o nome de um dos butecos: por sorteio ficou Botequim do Terguino, agora propriedade dos ex-endividados António Portuga e Terguino Ferro)

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