domingo, 25 de marzo de 2012

O homem estraçalhado

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A ninguém passou despercebido o absurdo da liberação do carrão do filho do ricaço, isto é: o dado crucial nesses casos, a cena do acidente, foi alterada rapidamente. Quem pediu a liberação? Quem teria a ganhar com isso? Também não entendemos a pressa em declarar que prestou socorro à vítima. Que socorro?

O que não sabíamos, e que o pensador Mauro Santayana agora nos revela, é que a polícia liberou o automóvel ainda com... pedaços da vítima. O coração, que foi parar na cabine do motorista, deve ter sido retirado, talvez esse o socorro prestado. Para dizer o menos: aqui ficamos todos como se tivéssemos levado um soco no estômago. O senhor advogado do atropelador - sem ficar vermelho - diz que possivelmente muitos dos pontos negativos do prontuário do motorista tenham sido cometidos pelos empregados e seguranças. Claro, os empregados pegam o carro do patrão e saem a duzentos por hora, faz sentido. Mais um pouco e ele dirá que o bólido saía sozinho, o fujão, no que será ouvido com complacência, quiçá concordância, por alguma autoridade. Ou, como disse o outro, a bicicleta é que estava em alta velocidade.

A face esmagada do morto pobre e a sina do menino rico

Por Mauro Santayana


O episódio trágico, do atropelamento e morte de Wanderson Pereira da Silva, pelo jovem Thor Batista, sugere algumas reflexões sobre a realidade brasileira de nossos tempos. Com altos e baixos, avanços e retrocessos, a história política é a da constante luta pela liberdade. Liberdade não é um conceito utópico e ideal, mas uma forma digna de viver. Ao enumerar as quatro liberdades, Roosevelt poderia tê-las resumido a uma só: a liberdade contra o medo. Somos, todos os seres vivos, sujeitos ao medo maior, que é o da morte. Mas se não podemos afastar do destino o fim inexorável da existência biológica, podemos afastar os outros medos, como os da fome, do desemprego, da doença, e até mesmo da humilhação, mediante o compromisso ético da solidariedade.

O grande medo que persegue os pobres, desde que surgiu a propriedade privada sobre os bens comuns, é o da injustiça. O pobre, filho de pobres, continuando pobre, sabe perfeitamente que a justiça será sempre contra ele, ainda que haja advogados e juízes honrados que possam defendê-lo. Acima da dignidade dos juízes, impõem-se o sistema econômico e as brutais normas do capitalismo.

As leis, conforme a constatação óbvia do abade Sieyès, que deveriam combater a desigualdade, são, elas mesmas, cúmplices dos privilégios. Mas há ocasiões em que, ainda que as normas e leis sejam claras e busquem a igualdade entre todos os cidadãos diante da justiça, os poderosos continuam a ter vantagens.

O jovem Thor, filho de um dos homens mais ricos do país — e que tem como meta tornar-se o mais rico do mundo — não é culpado de seus privilégios. Ao contrário: por mais poderoso seja hoje e ainda muito mais poderoso possa vir a ser amanhã, ele sempre será menor do que poderia vir a ser, se o seu berço fosse normal. Ele não terá a alegria de realizar-se integralmente — a menos que rompa com sua identidade, o que, mais do que impossível, é improvável.

Para isso, teria que fazer como tantos outros fizeram, a partir de Francisco Bernardone, renunciou à riqueza e se tornou, pela santidade, o mais rico de todos os seus contemporâneos, na alegria de servir aos mais pobres de Assis, entre eles os leprosos, aos quais estava vedado o acesso à cidade.

Não passaria na cabeça do filho de um rico empreendedor da atualidade, e de uma bela modelo, assumir votos de humildade e de pobreza. Mas para que viesse a sentir-se realmente rico, seria bom que apeasse de sua Mercedes de dois milhões, usasse veículo mais lento e mais modesto, e, como a maioria imensa dos jovens de sua idade, estudasse e trabalhasse como todos; que, como a imensa maioria das pessoas, aprendesse a viver e a ser um homem como os outros.

É natural e humano que o pai defenda o filho, ainda que ele possa ser culpado, se assim os fatos provarem. Não se acuse o empresário Eike Batista de ser condescendente com o filho. As vicissitudes do destino, de resto, conhecidas, condenaram-no a ser um pai diferente, e essa diferença pode explicar a prodigalidade que exerce no cuidado com os filhos.

Se não houvesse o atropelamento de um homem pobre, Thor continuaria, tranquilo, acumulando pontos negativos em seu prontuário de motorista e andando a velocidades espantosas em seu veículo, prateado e potente, semelhante a uma nave espacial nos vastos confins cósmicos. Mas houve o acidente, como tantos que ocorrem todos os dias no país.

Em todos os acidentes, há culpados e vítimas. Nesse, pelo comportamento de alguns meios de comunicação, e pelo argumento dos advogados, a vítima se transformou em réu. Alega-se, embora haja controvérsias, que o homem de bicicleta provocou a tragédia. Como bem anotou Cláudio Humberto, pelo estado do Mercedes Benz, um dos dois veículos estava em alta velocidade. Talvez a bicicleta.

A opinião pública tem o direito de saber exatamente o que ocorreu. Até agora, a versão divulgada é inaceitável. Ainda que o motorista estivesse sóbrio, isso não significa que houvesse sido prudente. Mesmo que uma investigação séria (porque, até agora, a ação policial não parece ter sido a mais correta) venha a provar que o ciclista tenha sido desavisado, o jovem Thor não é inocente. Os policiais agiram com leviandade, ao liberar o veículo, sem que um legista retirasse do automóvel partes do corpo da vítima. Como houve morte, o veículo teria que ser mantido como prova e minuciosamente examinado.

Como motorista de 21 anos, Thor teve a sua carteira provisória renovada, apesar das multas por excesso de velocidade, e 21 pontos negativos em seu prontuário, conforme as informações divulgadas. Os fatos, assim sendo, não aconselhavam que a ele fosse entregue um automóvel capaz de fazer mais de 300 quilômetros por hora. Dessa imprudência não está isento o pai, que lhe deu de presente o potente veículo.

E há uma constrangedora queixa da família da vítima, a que o empresário Eike Batista deve responder com o dever que lhe cabe: a de que ele teria achado exagerado o gasto de oito mil reais para a recomposição do rosto do morto e as despesas com o sepultamento. O empresário é conhecido pela prodigalidade de seus donativos a obras culturais e filantrópicas. Não parece provável que aja com tamanha insensibilidade nesse caso. Mas, sem prova em contrário, a acusação afetará profundamente a sua imagem de um dos mais arrojados e bem-sucedidos homens de negócios do Brasil.

Voltemos ao início: sem que haja justiça, sem que se busque a igualdade essencial entre todos os homens, e sem solidariedade, não somos livres, e a vida perde o seu sentido, seja ela uma doação de Deus ou milagre do acaso.






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