sábado, 18 de junio de 2011

O Rei dos Reis etíope

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Outro dia, lendo as insultuosas manifestações de governantes e da imprensa italiana, ambos propriedade do peripatético, um perigoso irresponsável, o fascista Silvio Berlusconi, sobre uma decisão soberana do presidente do Brasil num caso controverso, acabamos lembrando da Etiópia, antiga Abissínia.

Ainda: lendo sobre a posição do Itamarati, a favor do sigilo eterno de documentos, ficamos muito curiosos a respeito do voto brasileiro no infame incidente de 1936, bem como sobre a atuação da diplomacia brasileira nessa e em outras ocasiões.

A Etiópia - significado de "terra de paz superior", segundo especialistas -  é o sítio que possui os traços mais antigos da humanidade, bem como um dos países mais velhos do mundo. Sua dinastia remonta a dez séculos antes de Cristo.

A Igreja Ortodoxa Etíope - nada tem a ver com a Católica, é independente, mas reconhece a ascendência da Igreja Ortodoxa Copta, estabelecida por São Marcos no Egito, cujo chefe é o Papa de Alexandria, sucessor de São Marcos - afirma que na igreja Nossa Senhora Maria de Zion, em Aksum, repousa a Arca da Aliança mencionada na Bíblia, dentro da qual estariam as Tábuas da Lei onde estão inscritos os Dez Mandamentos.

Segundo descobertas e estudos recentes, é o berço do homo sapiens.

Até 1935 nunca fora dominada por uma potência externa. Todos os seus vizinhos de fronteira já haviam se transformado, a ferro e fogo, em colônias inglesas, francesas e italianas.

Tendo como pretexto um mero tiroteio na divisa com uma colônia italiana (Eritréia), em 3 de outubro de 1935 os exércitos de Mussolini iniciaram a invasão. Houve tenaz resistência dos etíopes, enfrentando as armas modernas do invasor. Um morticínio terrível, para os africanos: pedras e lanças contra metralhadoras, tanques, canhões e gás venenoso.

A Etiópia valeu-se da Liga das Nações, que decretou sanções ao invasor. Sanções de mentira: em 5 de maio de 1936 houve a ocupação de Adis Abeba. O fracasso da Liga em impedir a agressão foi um sinal do que viria em 1939: a pior guerra de todos os tempos, a segunda mundial.

Em 30 de junho de 1936 o imperador Hailé Sélassie (nascido com o nome de Tafari Makonnen, em 23/7/1892, morto em 27/8/1975), novamente recorreu à Liga das Nações, se fazendo presente na reunião em Genebra, onde proferiu o seu mais famoso discurso.

Os livros de história contam sobre a fala do etíope:

"Certamente que aquela sessão de 30 de junho de 1936 foi a mais constrangedora que a Sociedade da Liga das Nações assistiu na sua curta existência. De pé, no púlpito frente ao microfone, o Négus (Rei dos Reis), o imperador da Etiópia Hailé Sélassie, um homem pequeno, barbudo, com uma capa preta sobre os ombros, de enorme dignidade, protestava contra a invasão do seu reino africano pelas tropas da Itália fascista. Viera invocar o principio da Segurança Coletiva, segundo o qual um ataque a uma nação integrante da Liga significava uma agressão a todos os seus membros. Nas laterais, tentando impedir o seu discurso indignado, lido em aramaico, jornalistas italianos apupavam e vaiavam o estadista. Pior ainda foi o resultado da votação em que ele pedia que os delegados não reconhecessem a conquista do seu país feita pelo agressor, que naquelas alturas já havia ocupado a Etiópia."

Os italianos sairam da Etiópia em 1941, empurrados pelos ingleses na segunda guerra mundial. A partir de então, deu-se a presença inglesa, com sua costumeira "ajuda".

Hoje a Etiópia, terra de petróleo e diamantes, de governantes carniceiros e de uma nomenklatura de nababos, é um dos países mais pobres do mundo (atrás somente da vizinha Somália, esta faminta também com a "ajuda" inglesa), onde o flagelo da fome é uma vergonha para a humanidade.

Hailé Sélassie, também conhecido como Ras (príncipe) Tafari, é tido por muitos como uma divindade, a encarnação de Jah (Deus) na Terra. Négus (Rei dos Reis), Conquistador de Judá, Senhor dos Senhores. A dinastia do trono que ocupou remontaria, tradicionalmente, ao Rei Salomão e à Rainha de Sabá. Inspirou o movimento, ideologia ou religião Rastafari, que se espalhou pelo mundo graças ao jamaicano Bob Marley.

Tudo o que se disser sobre Hailé Sélassie será pouco. Certo é que foi um grande homem e um grande pensador. Se o tivessem ouvido em suas preocupações com o multilateralismo e a segurança coletiva, certamente o mundo seria outro.

Abaixo, fragmentos do seu discurso na vergonhosa sessão da Liga das Nações em 1936.

Eu, Hailé Sélassie, Imperador da Etiópia, estou aqui para reclamar justiça para com meu povo, bem como a assistência que há oito meses passados prometeram a ele, quando, na ocasião, 50 nações concordaram que uma agressão, violando os tratados internacionais, havia sido cometida contra ele.

Não há precedente de um chefe de estado ter vindo falar nessa assembléia, como não há precedente de um povo ser vítima de tal injustiça, estando no presente abandonado e colocado em risco de vida por seu agressor. Igualmente nunca se viu o exemplo de um governo proceder o sistemático extermínio de uma nação por meios bárbaros, violando as mais solenes promessas feitas pelas nações da terra de não usar contra seres humanos inocentes as injúrias do gás venenoso. É para defender um povo que luta pela sua antiga independência que o chefe do Império Etíope veio até Genebra para cumprir com o seu dever, depois dele mesmo ter lutado no comando dos seus exércitos.

Além disso, nunca se viu tão gritante exemplo de um país que tenha se posto a extinguir metodicamente, por meios cruéis, toda a raça de um outro povo, em transgressão a normas de um acordo ao qual aderiu honrada e publicamente, na forma de um tratado concluído com as nações do mundo, que determina que nenhum governo poderia tirar do outro sua própria nação por meio da guerra e que não poderia exterminar inocentes com gás toxico.

Este assunto que trago perante a Assembléia Geral da Liga das Nações Unidas não visa apenas resolver o que a Itália fez, por meio de agressão. Eu diria que isto toca a todos os governos do mundo. Esta é uma questão que envolve o dever de governos de assistir uns aos outros para estabelecer a segurança mundial, coletiva, envolve a própria sobrevivência da Liga das Nações, envolve a confiança que as nações podem depositar nos tratados que firmaram, envolve os valores depositados em promessas que os países pequenos receberam em relação à inviolabilidade de seus territórios e independência, o respeito a esses valores, envolve analisar se o princípio da igualdade entre as nações se confirma ou se os pequenos deverão se submeter ao subjugo dos poderosos.

Em suma, não se trata apenas da Etiópia em questão, mas sim da forma decente de vida dos povos do mundo, que foi afetada e prejudicada.

Além do Reino de Deus, não há governo humano que tenha mais mérito do que o outro. Mas, nesta Terra, quando um governo poderoso acredita que está certo eliminar outra nação, contra a qual nenhuma ofensa tenha sido provada, então chegou a hora do prejudicado trazer os males que vem sofrendo perante à Liga das Nações. Deus e a História estarão observando, como testemunhas, o julgamento que será dado aqui.

Peço a Deus Todo-Poderoso que ele poupe as nações do terrível sofrimento que recentemente infligiram ao meu povo, sofrimento que os que me acompanham aqui foram as testemunhas horrorizadas. É meu dever informar aos governos reunidos em Genebra da responsabilidade que eles têm sobre as vidas de milhões de homens, mulheres e crianças, do perigo mortal a que eles estão submetidos, descrevendo aqui o destino que sofre a Etiópia. O governo italiano não faz a guerra somente contra os guerreiros, mas contra toda a população, ainda que afastada das hostilidades, com a intenção de aterrorizá-los e exterminá-los.

Vocês os grandes poderes, que prometeram dar garantias de segurança coletiva, para evitar que nações pequenas sejam extintas e que o destino que está tendo a Etiópia também venha a ser o seu, consideram vocês que tipo de assistência oferecer, de tal forma que a liberdade do povo etíope não seja destruída e sua integridade territorial seja respeitada? Vocês, os representantes do mundo, se reúnem aqui! Eu vim até vocês, aqui em Genebra, para cumprir o mais triste dever de um Imperador. Que resposta devo levar de volta ao meu povo?

Vocês jogaram um fósforo aceso na Etiópia, mas ele vai queimar a Europa!"

Enquanto 25 membros da Liga das Nações se abstiveram, 23 votaram contra a proposta de Sélassie. A favor, somente o voto etíope. Os representantes do mundo, capitulando, aceitaram o fato consumado: Mussolini havia se apropriado do reino de Négus.

Três anos depois a Europa ardeu em chamas, o horror em sua forma mais vil. Mussolini foi fuzilado em 1945 pela resistência italiana, e o seu corpo foi exposto pendurado de cabeça para baixo num posto de gasolina de Milão.

Sélassie foi assassinado pelos milicos do seu país, quando a milicagem era moda.

Como se sabe, a ONU sucedeu a Liga. E nada mudou.
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3 comentarios:

  1. Muito bom o texto e o discurso desse homem é maravihoso, éna o mundo ser assim!

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  2. Infelizmente o mundo é assim, Nostalgia, mas um dia mudará. Desculpe levar tanto tempo para ver teu recado. Parece que agora caminhamos, os loucos caminham, para algo semelhante. O Irão encurralado, Israel cheio de bombas atômicas que os outros não têm, cortesia de Mr. Sam, e sempre com um fósforo aceso. Muitos países encurralados pela fome. Valha-nos Deus.
    Grato e abraço.
    Salito

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  3. Nada mudou mesmo. Hoje vemos o ditador Bashar Al Assad & "rebeldes" da Síria exterminando O PRÓPRIO POVO com armas químicas. E depois de passar a borracha em 100.000 pessoas ele ainda ri todo alegre, como se estivesse voltando de uma festa.
    Lembram aquele senhor da Legião da Boa Vontade? Há muito tempo atrás ele dizia com todas as letras: "o demônio é o próprio homem".
    Eis aí a mais pura verdade.

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