jueves, 21 de octubre de 2010

Sua Excelência

Carlito Dulcemano telefona de Montevideo. Pede encarecidamente que postemos ainda hoje o conto "Sua Excelência", do grande Lima Barreto. Aliás, Afonso Henriques de Lima Barreto recentemente visitou este blog, em Lima Barreto, com algumas verdades sobre a imprensa, da sua época, bem entendido, lá pelo início do século passado.

É uma beleza possuir amigos sensíveis: Carlito, meio cubano, meio uruguayo, conhece a obra de Lima Barreto como poucos.

Pois agora ele diz que com este conto, na verdade, o amaldiçoado escritor carioca mandava um recado para um arcebispo. Da sua época, bem entendido. Um recado com muitos despistes, os onanistas eram muito poderosos, sempre apoiados pelos olhares vulpinos dos políticos, faiscando de inconfessáveis interesses, todo cuidado era pouco.


Afirma Carlito que o sacerdote, escudado na CNBB daquele tempo, mas representando somente uma facção da empresa em que trabalhava, se é que se pode chamar aquilo de trabalho, tratava-se de um reacionário daqueles, um Belzebu de vermelho (foto), do tempo em que o Papa era o chefão do Santo Ofício da Bela Fogueira, o mesmo que a todo instante mandava o Leonardo calar a boca, e Lima Barreto, muito porreta, sabia das suas malvadezas em relação aos pobres de Paris brasileiros. Negras pobres e brancas pobres, então, visadas à beça, o tal arcebispo preferia ve-las mortas a admitir discussão sobre o aborto, prática por alguma razão muito comum nas classes baixas do Rio antigo. Nas altas também, mas as moçoilas destas não morriam ensanguentadas em fétidos açougues da periferia, podiam recorrer à asséptica clínica do eminente médico Dr. Gregorius Hypocritus (hummm... Gregório?), ali pertinho da Rua do Ouvidor.

Bem, custamos a crer, empedernidos incréus que somos, mas há que se reconhecer que é uma versão plausível, que com mais uns rabiscos poderia até ser plenamente convincente, outros tantos e se tornaria uma verdade absoluta, pelo mesmo modus operandi dos urubus ensaiados. Tempos terríveis aqueles. Vai que a imprensa ainda ajudasse o patife bispão das sufragâneas. Carlito domina o assunto: acrescenta que na época alguns padres espanhóis, que eram feras na arte de agasalhar, costumavam se apaixonar perdidamente pelos sacristãos bem armados. Houve tempo em que um desses sacristãos, o negrão Manguaço da Mariana, um caçador de cervos - daí a arma, era quem realmente mandava no baixo-clero lá da rua Santos Dumont. Entrava bufando de arma na mão: cadê as minhas sacerdotisas! Mas isto já achamos que é coisa inventada, e não pelo sofrido e genial Lima Barreto.

Charlando um tempão com Carlito, depois que atualizamos a velha história de Mr. F. Febraban, que presentemente anda à cata de novos mercenários, aproveitamos a deixa do negão Manguaço da Mariana, que caçava cervos, e lhe contamos sobre os muitos viados que comemos quando do exílio na Sibéria. Como todos os recantos do mundo, este também tem suas peculiaridades na culinária: lá se fazem umas celestiais tortas de carne de veado; acompanhadas de vinho tinto..., dos deuses! Naquela paisagem lunar, frio que congela os ossos dos boêmios que cometem a besteira de ficar pela rua até altas horas, o que dizer, então, de sangue de viado com vodka! Do capeta! Para além do sabor único, uma fonte inigualável de vitaminas, estas imprescindíveis naquele ambiente hostil. Ahn... que mania, já íamos mudando de assunto. Outro dia traremos a receita de como se entorta um cervo. Para beber, que é a preocupação mais latente, adiantamos que o sangue do viadinho deve estar quente, extraído logo após a punhalada na jugular, como alguns, pastores ou não, fazem para sugar ovelhas.

Taí, todo engravatado, pessoa do plural e tudo, e esqueço de perguntar a razão de postar hoje, necessariamente, o conto.
Bem, aí vai, a pedido de Carlito Dulcemano Yanés, para os entendidos. Em ministérios.
 
 
SUA EXCELÊNCIA
O Ministro saiu do baile da Embaixada, embarcando logo no carro. Desde duas horas estivera a sonhar com aquele momento. Ansiava estar só, só com o seu pensamento, pesando bem as palavras que proferira, relembrando as atitudes e os pasmos olhares dos circunstantes. Por isso entrara no cupê depressa, sôfrego, sem mesmo reparar se, de fato, era o seu. Vinha cegamente, tangido por sentimentos complexos: orgulho, força, valor, vaidade.

Todo ele era um poço de certeza. Estava certo do seu valor intrínseco; estava certo das suas qualidades extraordinárias e excepcionais. A respeitosa atitude de todos e a deferência universal que o cercava eram nada mais, nada menos que o sinal da convicção geral de ser ele o resumo do país, a encarnação dos seus anseios. Nele viviam os doridos queixumes dos humildes e os espetaculosos desejos dos ricos. As obscuras determinações das coisas, acertadamente, haviam-no erguido até ali, e mais alto levá-lo-iam, visto que ele, ele só e unicamente, seria capaz de fazer o pais chegar aos destinos que os antecedentes dele impunham…

E ele sorriu, quando essa frase lhe passou pelos olhos, totalmente escrita em caracteres de imprensa, em um livro ou em um jornal qualquer. Lembrou-se do seu discurso de ainda agora.

“Na vida das sociedades, como na dos indivíduos…”

Que maravilha Tinha algo de filosófico, de transcendente. E o sucesso daquele trecho? Recordou-se dele por inteiro:

“Aristóteles, Bacon, Descartes, Spinosa e Spencer, como Sólon, Justiniano, Portalis e Ihering, todos os filósofos, todos os juristas afirmam que as leis devem se basear nos costumes…”

0 olhar, muito brilhante, cheio de admiração – o olhar do líder da oposição – foi o mais seguro penhor do efeito da frase…

E quando terminou! Oh!

“Senhor, o nosso tempo é de grandes reformas; estejamos com ele: reformemos!”

A cerimônia mal conteve, nos circunstantes, o entusiasmo com que esse final foi recebido.

O auditório delirou. As palmas estrugiram; e, dentro do grande salão iluminado, pareceu-lhe que recebia as palmas da Terra toda.

O carro continuava a voar. As luzes da rua extensa apareciam como um só traço de fogo; depois sumiram-se.

O veículo agora corria vertiginosamente dentro de uma névoa fosforescente. Era em vão que seus augustos olhos se abriam desmedidamente; não havia contornos, formas, onde eles pousassem.

Consultou o relógio. Estava parado? Não; mas marcava a mesma hora e o mesmo minuto da saída da festa.

- Cocheiro, onde vamos?

Quis arriar as vidraças. Não pôde; queimavam.

Redobrou os esforços, conseguindo arriar as da frente. Gritou ao cocheiro:

- Onde vamos? Miserável, onde me levas?

Apesar de ter o carro algumas vidraças arriadas, no seu interior fazia um calor de forja. Quando lhe veio esta imagem, apalpou bem, no peito, as grã-cruzes magníficas. Graças a Deus, ainda não se haviam derretido. O leão da Birmânia, o dragão da China, o língam da Índia estavam ali, entre todas as outras intactas.

- Cocheiro, onde me levas?

Não era o mesmo cocheiro, não era o seu. Aquele homem de nariz adunco, queixo longo com uma barbicha, não era o seu fiel Manuel.

- Canalha, pára, pára, senão caro me pagarás!

O carro voava e o ministro continuava a vociferar:

- Miserável! Traidor! Pára! Pára!

Em uma dessas vezes voltou-se o cocheiro; mas a escuridão que se ia, aos poucos, fazendo quase perfeita, só lhe permitiu ver os olhos do guia da carruagem, a brilhar de um brilho brejeiro, metálico e cortante. Pareceu-lhe que estava a rir-se.

O calor aumentava. Pelos cantos o carro chispava. Não podendo suportar o calor, despiu-se. Tirou a agaloada casaca, depois o espadim, o colete, as calças.

Sufocado, estonteado, parecia-lhe que continuava com vida, mas que suas pernas e seus braços, seu tronco e sua cabeça dançavam, separados.

Desmaiou; e, ao recuperar os sentidos, viu-se vestido com uma reles libré e uma grotesca cartola, cochilando à porta do palácio em que estivera ainda há pouco e de onde saíra triunfalmente, não havia minutos.

Nas proximidades um cupê estacionava.

Quis verificar bem as coisas circundantes; mas não houve tempo.

Pelas escadas de mármore, gravemente, solenemente, um homem (pareceu-lhe isso) descia os degraus, envolvido no fardão que despira, tendo no peito as mesmas magníficas grã-cruzes.

Logo que o personagem pisou na soleira, de um só ímpeto aproximou-se e, abjetamente, como se até ali não tivesse feito outra coisa, indagou:

- V. Exa. quer o carro?

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