sábado, 11 de septiembre de 2010

Velório à Pampulha (final)


Alguém fala “É a vida...” e subitamente um novo silêncio desce no apartamento. Veio natural, sem combinação, um silêncio demorado, ficando mais pesado a cada segundo. Sinto seus olhares para o caixão. Também me dá uma coisa engraçada, melancólica, difícil de dizer.

Então compreendo que olharam para o copo, para o centro da peça, novamente para o copo, e cada um pensa em quando e como será a sua vez. Durou uns dois minutos, uma eternidade.

Madalozzo nervoso grita: “Quem vai botar o disco desta vez?!”, espantando em parte a sombra que pairava.
A Vera: “Alguém trate de achar Perfídia aí, todo mundo sabe que ele é doido pelo bolero”.
Acham umas vinte versões, optam pelo Nelson Gonçalves.


Segue o baile. O Joeci numa água de dar tristeza; aliás, há vinte minutos olha para cá com uma cara de greve de fome no décimo dia, meneando a cabeça e repetindo, penalizado: “O camarada...”. Deixa estar, algumas comidinhas ele se recobra e vai provocar o Pato para uma sinuca. Será uma partida justa e equilibrada, imperdível, quando a farra acabar quero assistir. Claro, o Pato dará de vantagem cem pontos e a sete livre.

A Verinha embarcou no uísque do Roni, vem e me sussurra: “Desgraçado, merecia era morrer de tiro, onde já se viu na cama...”, depois vai para o lado do Danilo, se abraçam e choram copiosamente. Tinha que filmar.

O Beto irmão do Roger, vestido de ninja, todo de preto, irrompe na sala em disparada, estaca e solta o seu grito de guerra: “Rá!”, em posição de ataque. Depois, servindo-se de trago, tira o capuz e conta que pretendia dar um karatê na morte mas a bandida não se defendeu.

As mulheres trazem os comes, o Maga experimenta o frango à passarinho e emputece: “Esqueceram o sal! Logo no velório de quem! Andando com vocês até eu morria!”. Feriu as pobrezinhas.


Entra o Baixo Clóvis, pelas observações que fazem veio pilchado, todo macanudo. Pára defronte ao caixão e balbucia: “Eu não acredito...”, fica me olhando um tempão para se certificar e sai em busca de cerveja. Esse com uma mísera caixa de brahmas dorme na mesa, espero que hoje ao dormir não seja em cima de mim.

O Maia pede silêncio e ninguém liga, o papo, a bebida, a comida com sal póstumo e a música têm prioridade. Indigna-se e esbraveja: “Silêncio, por favor!”. Todos se calam, exceto o Madalozzo.

O Maia, olhando feio para o comunista, de novo pede licença, compenetra-se e calmamente toma a palavra: “Senhores e senhoras. Façamos desta solenidade um ato político. Como todos sabem, e bem falou o pioneiro estagirita, o homem é um animal político, por isso o homem civilizado é o melhor dos animais, e a reflexão tem como base a discussão sobre a escravatura natural e a escravatura convencional...”.

O Madalozzo solta um rugido: “Ah, não, pode parar, Aristóteles de novo, já chega o tal de Nicômano do outro dia, seu imbecil!”. Pronto, feita a bagunça. Gente apartando, empurrões.

Acalmados os ânimos, Maia retoma: “Bem, abstraídos os pensadores, falando agora de modo que alguns ignorantes possam entender, eu proponho ampla divulgação das idéias do sempre lembrado, pois além de ter sido muito querido pelos bares...”, pigarreia, lembra que não em todos, tosse, pensa em remendar mas desiste, continuando: “..., deixa inúmeros admiradores anônimos e..., afinal, morrem pouquíssimos comunistas no Brasil...”.

Sórdida insinuação, mas agüento firme. A massa petista, maldosa, ri entredentes. Protesto veemente do Joeci: “Amoral, tendencioso, respeite ao menos na morte!”. O Ireno e o Celso a muito custo seguram o Madalozzo, fora de si, que quer partir para a agressão com uma garrafa, achou as estocadas diretas para ele.

O Maia finge que não é com ele e vai: “..., é que, na verdade, felizmente morrem poucos, daí porque temos tantos companheiros vivos, mas o Salito doeu, o camarada valia por uns mil dos que conheço”. Falou isso olhando para o Mada. Aplausos, mas Joeci resmunga. O Ireno novamente tem de segurar o Mada. O Maia vai prosseguir quando o Maurri arranca-lhe a palavra: principia, impetuoso, um discurso em alemão. Deve estar dizendo que eu era antipático, metido a sabe tudo, mas às vezes tolerável, quando calado. O Roni aplaude.

O Roger suspira de saudade do seu amigo germânico, recordando a melancólica despedida no aeroporto, ou sou eu que estou imaginando coisas? Maurri começa uma letra erre e o Maia revida a intromissão: “... tenho certeza de que era apreciado até pelos desconhecidos!”. O Roger dá um pulo da cadeira e, fiel à mania de convidar estranhos à mesa, exclama: “Concordo plenamente. Mais, não só concordo como vou agora lá no Pampulha, pois tem uns que não nos conhecem: quatro egípcios, três holandeses, três suecas e um iraquiano (murmúrios na sala), sem falar nos dois baianos perto do banheiro das mulheres e do uruguaio que vai passando na rua”. Não entende a explosão de risos e sai porta afora gritando: “Estrangeiros e solitários de todo o Universo, vinde a mim; eu, o fenício, sou o pai de vocês!”. O Maurri, fuzilando o Maia com um olhar sanguíneo, encolerizado prossegue o discurso em alemão. Achtung!


Sessão nostalgia: o Pato conta a história da vez em que fomos num churrasco na periferia, num pessoal bem povão mesmo. Levou a carne, se não levasse iríamos comer capim, eles tinham apenas dois ou três tomates. Lá pelas tantas, conta que a neguinha, mulher do dono da casa, inventou de me dar bola, de se esfregar, na cara do marido e de todo mundo. Aquilo me incomodou. Essa eu contaria melhor, mas na voz dele saiu assim: “O compadre me entregou o 38, pedindo pra mantê-lo bem à mão, que ele ia resolver aquilo. Passou a retribuir a frescura. Com todo no mundo na sala, ele a convidou para ir pro quarto do casal, a peça ao lado da sala. Ela foi! Fechou a porta. O marido e todos sentados nos sofás da sala. Dali a pouco veio lá de dentro o som de tapas, choro da mulher, entramos no quarto e o compadre tava sentado na cama, de roupa, e ela pelada, cruzada sobre as pernas dele, apanhando de palmadas na bunda. A bunda num vermelhão! Para aprender a respeitar o marido. E saímos vivos de lá!”. A turma ri a não mais poder. E ninguém pense que já andei armado, que idéia mais besta, o 38 era de brinquedo, mas na época eu até que tinha bons motivos para andar com um canhão.

O Ivens se empolga: “O Concapurfa certa vez se vestiu de mulher, de uma gringa que arranjou, e a gringa vestiu a roupa dele, chapéu e tudo, e saíram pra noite, de festa, depois ficaram uma semana no Motel dos Alpes. Veio um primo do Paraguai, de Pedro Juán Caballero, visita-lo, e quem acha o doido? O primo queria procurar nos hospitais, IML, mas eu e o Pato dissemos não... vamos começar pelos motéis. Achamos no terceiro que fomos, na portaria negaram, mas depois que saímos avisaram ele”. Concapurfa porque houve um probleminha com uma senhora contra-parente dele, do que não convém falar.

Os outros se empolgaram, resolveram contar histórias também. Pato começa com as pescarias onde se pescava de tudo menos peixes, o Baixo conta da vez em que interrompi o trânsito da Av. Cauduro para fazer churrasco no meio da rua.

Alguém observa que o Ivens havia entrado furtivamente e não chegou perto do corpo. Ele, segurando a cachacinha lá de fora, diz que não suportaria. Reclama que brigou com a mulher e pede sinceramente que o próximo a morrer que trate de morrer de dia, ela não permitirá que torne a sair altas horas da noite, às dez. Ainda pergunta pelo Roni, mas não lhe dão ouvidos. É mesmo, sumiu o Roni.

Resolvi cochilar um pouco, mania de repetirem sempre as mesmas histórias. Contem uma que eu não sei. Não dormi, mas desviei o pensamento.


Recomeça a cantoria. O Ivoran continua com ar ameaçador para o meu lado. Essa mania de virar caixão... O Danilo desvia a sua atenção pedindo ajuda para preencher os cheques da vaquinha dos comes e bebes, mas o Ireno se antecipa em auxiliar. O Ireno iludido, pensando ser sortudo porque não tive tempo de invadir o balança-mas-não-cai dele, não perde por esperar.

Enquanto o Madalozzo puxa um baseado, calculando se a estas horas não tem mulher nova no Blue Jazz, o Schiru encerra a história da chinoca que conheceu no passado e passa a descrever os atributos do violão espanhol que possui. O Alhambra, segundo ele, sofre um longo e rigoroso processo, desde a maturação da madeira, passando pela colagem especial, levando em conta até a umidade relativa do ar da região a que se destina. Alguém sibila: “Queria ver no Pólo Norte...”. Schiru ignora o cochicho e, por fim, resolve tentar uma zarzuela do Paco de Lucía. O Danilo e o Beto, este ainda de ninja, saem sapateando e estalando os dedos. Olé!

Conseguiram comunicar o Xavasco, que neste instante chega abalado. Respira fundo e convida os presentes para, em pé, prestarem um tributo à memória do venerável amigo. Arrastão de cadeiras, todos em pé, ele tira uns acordes sentimentais do violão, acelera e, esmerando-se, começa baixinho: “Naquela mesa ele sentava sempre...”. Os que sabem a letra, acho que todos, juntam-se numa só voz, subindo o volume pausadamente, Verinha segura a melodia, no tom ditado: “..., e me dizia sempre o que é viver melhor...”. Quando concluem estão com a voz embargada: “Naquela mesa está faltando eeele, e a saudade deeele, está doendo em miiiiiim”. Faço um terrível esforço para não chorar. Eles derramam rios de lágrimas.

O trago rola com mais intensidade, a Verinha mal consegue falar de emocionada, o Ivoran de há muito só gesticula e emite sons de macaco-da-noite. Não vejo o Renan, acho que foi embora; não, não foi, está de perfil. A reboque o Joãozinho consegue a atenção da turma para algo extremamente importante que tem a dizer. Quando todos se fixam nele, de novo dispara: “Viva o Brizola!”. Querem matá-lo.


O Celso desafia o Pato, debochando que é campeão do mundo. O Pato replica que taça Toyota não quer nem de graça. O Aldêmio intima o Ireno sobre a caderneta de poupança das gorjetas dos garçons do Pampulha e o Celso prontamente toma interesse pelo assunto. O Ireno diz que não sabe do que se trata e vai lá para o pátio.

Madrugada entrando e o Claudião aterrissa na minha frente fazendo um bruto escândalo, com uma fieira de palavrões, agitadíssimo. O pessoal procura tranqüiliza-lo mas ele teima em me dar vinho goela abaixo. Obrigado, irmão, aquela vodka já foi há horas. Acalma-se um pouco, abraça alguns, e saindo avisa que vai até o carro pegar a carne, o carvão e o barril de chope. Não acredito, o infeliz vai fazer churrasco. Com cinco litros de chope, além do que já bebeu, vai querer me levar para Buenos Aires.

Pato resolve acabar comigo, canta: “Vende-se um apartamento, bem no centro da cidade, por um preço de ocasião, por motivo de saudade...”. Ainda não foi desta vez, mano mais velho.
Ele disfarça uma lágrima sofrida e queixa-se: “O demente poderia ter esperado pra gente festejar pelo menos até o ano dois mil”. Snif, snif, do Claudião, já de volta, e do Joeci.

Regressa o Roger só com os egípcios e as suecas, e um tradutor para os egípcios. As suecas não vão precisar. Aos encontrões uns quinze foram recepcioná-las à porta. Cintilam ávidos os olhos das louras ao verem a homarada sequiosa. Uma interminável paparicação, gentilezas, aqueles brutos se transformaram em doces rapazes. O que faz uma camanga de carne nova. Ninguém olha para os esfinges. O tradutor fugiu quando o mandaram comprar Underberg.


Chegam mais duas mulheres. Nos calcanhares delas entra o Schumacher. De novo a correria para a porta, nestas alturas os viados perderam a compostura. Não deram nem boa noite para o Schumacher, que vai largar na cozinha os vinhos especiais que trouxe.

As mulheres choramingam ao meu lado, meu amor... buaaaaá... mas logo aceitam ir lá para fora tomar uma bebidinha com a cachorrada. “Eram” minhas.

A festa se inflama, o Maia e a Verinha interpretam Adiós Muchachos, ele a plenos pulmões, a Vera com aquela vozinha doce, novamente segurando a melodia antes que o Maia meta a letra do tango na melodia da Marselhesa. O Xavasco na outra ponta embola tudo cantando uma de sua autoria, depois de dizer que era para agradecer um texto que escrevi borracho para a inauguração do seu boteco na Cidade Baixa.

O Joãozinho quer que alguém cante uma do Jerri Adriani, valha-me Deus. O disco no prato roda Exaltação à Mangueira: “A Mangueira chegou, ô, ô...”, com o Jamelão e a bateria da verde-rosa em volume mil. Inúmeros casais dançando ao redor do caixão, creio que uns dançam samba, outros tango, outros uma mistura. Joeci e Schiru afiguram tango com umas que não vi entrarem nem ouvi a voz. Roger diz que precisa sair para telefonar para o Havaí, avisar o Frederico sobre a fatalidade.

O Paulo portuga faz tempo que chegou, depois de fechar o Pampulha, mas só agora se manifesta, mostrando ao Milton as fotos de Portugal que prometeu mostrar a mim, consciência pesada, né?

Finalmente o Tigran conta a razão de estar enfurecido com uns argentinos. Representando o Clube dos Polacos, foi disputar uma partida de xadrez com o campeão do Clube Argentino do Cristal. O seu adversário com tapa-ouvidos, e a torcida argentina fazendo algazarra, bem ao seu lado até trombone tinha. Ele não conseguia se concentrar, mas ainda assim estava vencendo, logo iria transformar um dos peões das torres em Rainha, um ou outro era fatal. Aí o juiz, também argentino, o desclassificou por offside: sus peones estaban mui adelantados. Todos declaram guerra à Argentina.

Esforço-me para contatar o Pato por telepatia, Pato deve ser telepata, ora, para ele cantar Boneca Cobiçada, mas ele nem se toca, mete uma do Nei Lisboa em minha homenagem.

Cheiro de churrasco incendiando lá fora e ninguém cobra do Claudião o pernoite, o interdito deve ter pego no sono. Tigran voa para o pátio, para variar está com fome. O Ivens, que por incrível que pareça conseguiu mesmo fugir de casa, a Verinha e o Magalhães agora discutem as minhas qualidades. Poucas.

O Paulo entoa um fado tristonho que se perde na alaúza. Roger volta dizendo que o Frederico não poderá comparecer ao evento, não dá tempo e além disso amanhã tem a final do campeonato de surf, mas que prometeu tentar trazer uma havaiana para cada um. Vai aplicar sandálias neles, penso.

Maia está quase convencendo a vizinha do terceiro andar a largar do peéfeéle, sólidos argumentos. Os egípcios isolados num canto, sem bebida, até o Roger arrependeu-se de tê-los trazido, estão rezando um ralabarrala incompreensível, mas o Danilo adverte que vai ter um faniquito se um dos árabes não parar de dar em cima dele. Só sei que se um desses pilantras entrar numa de me embalsamar eu mato. Joeci desata a chorar novamente, mas agora é por lembrar da fazendeira que amava em Brasília.

Elevo uma prece, para baixarem a música e entregarem um violão para o Schumacher, mas quê, aumentam o volume.


O Ivoran se confunde e tira o padre roxo para dançar, o filho da mãe da voz fininha na moita foi ficando, ficando, apostando na doce ilusão de salvar uma alma, enquanto bebia do meu. O padrequinho reluta em dançar, Ivoran intima: “Ou dança ou apanha, sirigaita”. O de roxo explica que é petê, progressista e tudo, mas não adianta, não convence o exagerado, logo sai dançando, com a mão do Ivorix na sua bunda. Bem feito, quem mandou vir de vestido. Ouço gemidos vindos do quarto mais próximo e digo a mim mesmo que é uma das alienígenas, embora o ai-ai me soe familiar. O Roger dança com uma das suecas sem se mover, enamorado, na certa vai querer viajar para a Suécia no mês que vem. Espreito outra sueca dançando sozinha, ah, não, está com o Renan.

De minha parte, estou de olho na bancária de vermelho, uma alemoa que não conheço, mas juro que vou conhecer um dia. Roni volta alegre de um dos quartos, não consigo ver nada dos quartos na posição em que estou, mas sei que veio de lá. Ele volta piadista, todo contente, e fico alucinado porque não enxergo quem voltou junto.

O Maurri solta um berro que me viu com os olhos abertos, o Maga manda ele se cuidar com o delirium tremens, anda bebendo demais. Eu fechadinho quando alguns me olharam.

A bancária amada e querida, segurando a fronte com o indicador, polegar acima do queixo, recostada à estante, copo cheio na outra mão, diz com voz de gata rouca: “Até que é bonitão o do esquife, parece que está vivo, pena que foi pro beleléu, acho que ia me dar bem com ele...”. Quase pulo desvairado fora daqui gritando amor da minha vida, mas me controlo, sei que o Madalozzo mira perigosamente para o meu lado, e para o lado da minha morena predileta que lhe apresentei um dia, ele ainda indeciso sobre pular nela já ou esperar mais um pouco. Peço clemência a Deus, hoje não. Ouço o brado do Ivoran, ao se dar conta de que o padreco é homem, andou passando a mão no lugar errado: “Rua, patife!”. O padreco estava gostando da dança.


Colocaram as minhas lâmpadas coloridas, na sala as azuis. Compreendo que para os quartos foram as vermelhas e as verdes. A sala se transforma em suave é a noite. Agora sim, a zoeira é total. Os canalhas deram de traficar copos e garrafas por cima de mim; Torço que derramem na minha boca, uma dupla de absinto com uísque cairia bem, mas nada. A Verinha sai sem se despedir.

Disfarçam ainda com samba no prato, muitos dançando, outros cantando, mas sei que logo-logo vão rodar “F Comme Femme”. Cansado e com sono – não dormi ontem – tento me manter acordado, mas o organismo não agüenta, relaxo, azar, mais tarde dou o susto neles, é muito cedo, talvez duas ou três da manhã.


Desperto com o estrondo e instintivamente sento no caixão, o sono quebrou a concentração do japonês. Escuro, devem ter quebrado as lâmpadas azuis, resta somente uma pequenina na mesinha do canto. Ouço o ronco em uníssono, muitas formas humanas espalhadas pelo chão, pelas almofadas, sofás... o barulhão deve ter sido pelo desabar do último. Pelo estado do apartamento parece que houve uma batalha.

Perscruto a penumbra, acostumo os olhos, e constato que houve realmente uma batalha, com jeito de orgia. Cinco e vinte da manhã, a última vela lutando para piscar em seu final. A escura penumbra azul, o bruxulear da vela sumindo e a densa bruma de inverno entrando pela janela dão um aspecto surrealista ao ambiente, cena de corpos atravessados, garrafas atiradas, copos, almofadas, disco de bolero na derradeira faixa: “Frio en el alma, porque no estás conmigo, pena que llevo, como una maldición...”.

Abandono o caixão com dificuldade, as pernas dormentes, louco de vontade de tomar vinho, nem em sonhos pretendo ficar perto destes doidos. Um vento cortante bate a veneziana, me congela, fecho a janela. Tenho a nítida impressão que de gozador passei a palhaço do festim. Eles me pagam. Ora, pagam nada, a idéia foi minha. Uma das suecas pelada, deve ter ousado um strip-tease, as minhas parceiras não vejo. Jogo cobertores por cima dos malucos. Faltam muitos companheiros, o Pato deve ter saído providenciar alguma coisa, ou saiu para se manter afastado do bacanal. O aroma das flores me faz lembrar um tango aprendido na adolescência, e um aviso repentino me rasga a cabeça: o Recanto Latino vai fechar logo, se eu não aparecer. Saio apressado, tomo um táxi e chego lá com a casa ainda quase cheia, vejo de longe.

O Antonio Moreno abre a porta e me sento com ele numa mesa perto da entrada, protegido pela sombra. Lá no palco, o Pato, o Claudião e a Nina Moreno conversam seriamente, a Verinha na mesa a estibordo. A cantante uruguaia finalmente toma o microfone e anuncia, em portunhol: “Carísimos, me voy a cantar la ultima en esta noche, después los músicos y yo tenemos de hacer una apresentación, desde ahora hasta al mediodia, si no más, no velório de un loco que se murió... un adiós a Salito!”.

Não resisto, levanto, ando até o meio da pista de dança e grito: Nina, mi viejita, canta Por La Vuelta!


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Covil 4, Rua Duque de Caxias, 196/101, Alto da Bronze, Centro de Porto Alegre, agosto de 1990.
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