domingo, 29 de agosto de 2010

BÓIA, BOLA E BUNDA

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Logo que me alfabetizei, algo que ocorreu lá pelos 25 anos de idade, as meninas da Polaca ajudaram e emendei uns Supletivos. Depois tratei de ingressar numa universidade. Iniciei e logo abandonei Direito, Filosofia e Sociologia, não tive estômago para suportar a empáfia de alguns analfabetos com PhD que lecionavam nas puques da vida. Afinal, refleti, ainda existem autodidatas, e se nunca chegarei a ser um Milton Viola Fernandes, ao menos posso me virar fazendo qualquer coisa.
Não sabia ainda como tirar o monstro que morava dentro, até que li um conto do escritor Gilberto Kieling, chamado A Criação. Parece que o Gilberto decepcionou-se com a mutretagem no mercado das letras, onde só publicam lixo para fomentar a ignorância do povo, e se não me engano mora no interior do Rio Grande do Sul, na cidade de Santa Rosa. Morava, uns 10 ou 15 anos atrás, na primeira e única vez que conversamos. Quem souber dele me avise.
Como ia dizendo, a partir daquele momento dei de escrever contos, cheguei a publicar muitos, em livro próprio e em coletâneas, isto antes de pegar nojo de editoras movidas exclusivamente pelo vil metal.
Vou publicar aqui alguma coisa, isso de falar em política está me rendendo muita azia, se continuo logo terei uma bela úlcera ou coisa pior. Antes pretendia postar o conto do Gilberto, que me deixou muito emocionado, encantado, é aquela coisa que eu queria ter escrito, ele tirou daqui!
Enquanto não encontro o texto (com essa de andar para lá e para cá, Brasil, Uruguay e África, acabei escondendo de mim mesmo em algum sótão), começo com um continho engajado do Ariosto Augusto de Oliveira, que quando li achei muuuuito interessante, a começar pelas coisas que ainda acontecem em delegacias, para não falar no ambiente das nossas instituições destinadas a ressocializar as pessoas. O conto é de 1988. Hoje, com a superpopulação carcerária piorada, sabe Deus como andam as coisas. A partir do dia que li passei a visitar presídios, levar cigarros e conversar com a moçada, ganhei muitos amigos (é bom que Mr. F. Febraban saiba disso), parei há uns cinco anos, não aguentava mais, um dia contarei aqui a experiência. Aí vai, Ariosto Augusto de Oliveira:



Aqui dentro a vida é bóia, bola e bunda. De um alto funcionário da Casa de Detenção de São Paulo.

BÓIA, BOLA E BUNDA


Para os encarcerados: artigos e parágrafos.




Os homens me ganharam num mocó da Brasilândia. Tava dormindo e eles entraram com tudo. Deram seis tecos no Cara de Vaca e apagaram ele ali mesmo. Eu consegui pular a janela e chegar no meio da rua. Me abracei com uma velha e fiquei gritando: Não deixa eles me matarem. Eles querem me apagar. Eu me entrego, mas não deixa eles me apagarem não.
Tinha muita gente na rua e foi por isso que os caras não me fizeram a pele.
No distrito joguei redondo. Comecei dizendo que não tinha nada e eles foram me apertando. Umas porradas e eu dizendo que não tinha bronca nenhuma. No pau-de-arara larguei um pouco. Dois assaltos no Morumbi. Na maquininha preta larguei mais algumas. Choque dói pra caralho. Duas joalherias. Uma no centro e outra na Augusta. Quando mudou a equipe de plantão me fodi de verde e amarelo. Tinha um gordo, um puta cara forte e foi na mão desse que eu dancei. Me deu dois telefones que eu fiquei surdo uns dez minutos. No primeiro, quando as duas mãos dele acertaram meus ouvidos fiquei até cego. No segundo, eu caí da cadeira uivando. Ele me arrastou pelos cabelos e disse rindo: Então é esse que não quer ser apagado? Tá legal, então vou te acender. Apagar não pode, mas acender pode, é ou não é? E pegou um litro de álcool de dentro do armário, jogou na minha roupa, na minha cabeça. Puxou a caixa de fósforos e sentou na ponta da mesa: Eu vou jogar os palitos daqui. Se algum chegar aceso, você já era e a gente vai dizer pros repórteres que estão aí fora: Suicidou-se. Pode fotografar à vontade pra não dizer que a polícia tortura.
O filho da puta jogou bem uns seis palitos e eu tive que abrir as três mortes. Um japonês na porta do draive em Moema. Um coroa que quis me encarar num bar da Santa Ifigênia. O Tetela que quis me engrupir na divisão de uns troços que a gente tinha afanado em Santos.
Assinei as broncas e vim pra Detenção.
No meu xadrez tinha uma pá de caras. Três crioulos parrudos e um pernambucano gordo. O carcereiro disse pros caras quando me levou: Devagar pra não assustar a menina. Sentei encostado na parede e o pernambucano gordo veio falar comigo: Qual é a tua? Três 121 e uma porrada de assalto, eu disse. Ele quis saber dos 121 e eu tive que falar do japonês, do coroa e do Tetela. Depois da janta um dos crioulos se acocorou do meu lado: Como é que tá a barra lá fora. O de sempre, eu disse e fiquei em dúvida se tinha que matar primeiro ele ou o pernambucano gordo.
De madrugada um outro crioulo desceu pro beliche de baixo e enrabou um magrinho banguela. Geme, gostosinha, geme no pau do Gavião. O magrinho disse qualquer coisa que não pude ouvir e o crioulo deu um tapa na cara dele. Geme, putinha, geme ou te arrebento. E largou a mão de novo. O magrinho começou a gemer. O crioulo bufava grosso: Mexe, mexe a bundinha. Arrebita pra entrar tudo, arrebita a bundinha, gostosinha.
O Pernambucano sentou no beliche dele: Porra, Gavião. fico tesudo pra caralho de ver tu comer a tua mulher. Olha só o tamanho do meu cacete. Já tá babando. E chamou o cara que dormia no beliche de cima.

***

Na hora do café um cara veio falar comigo: Eu sou irmão do Cara de Vaca. O Nivaldo. Tudo bem, eu disse. Parece que tem uns troços dele que estão no teu nome, ele continuou. A conta do banco e a caderneta de poupança. É, eu disse. Só que a conta é meio a meio. E quanto tem na conta, ele perguntou. Uns oitocentos, eu disse. Legal, ele disse, vou querer a minha parte. Tudo bem, eu disse. É só arranjar o advogado que eu assino a procuração pra tu sacar os quatrocentos.
De tarde procurei o Nivaldo: Como é que eu faço pra saber quem é o cara que me entregou. O Nivaldo disse: O Chulé. O Chulé é quem cuida dessas coisas aqui dentro. E ficou me olhando de um jeito demorado. Tive de explicar pra ele: Com as minhas broncas eu não saio daqui tão cedo. E se vou viver aqui tenho que ser respeitado. E pra ser respeitado todo mundo vai ter que saber que eu não livro a cara de ninguém. E o primeiro que eu tenho que acertar é esse cara. Fomos ver o Chulé e ele pediu uma milha pela informação. Numa semana dava o nome do ganso. Eu quis saber como e o Chulé explicou: Tem ganso burro e ganso vivo. Ganso burro batalha pro lado dos homens. Além de ganhar uma mixaria vive no perigo de virar queima de arquivo. Ganso vivo trabalha pros dois lados. Entrega pouco pros homens e defende o deles com a gente. Sabe que o nosso pagamento é garantido e se garante na lei do cão. Nenhum ganso vivo entrega gente boa. Só pé-de-chinelo e assim mesmo pra fazer sala pros homens. Vivem é da grana que defendem com a gente.
No meu primeiro pátio o Felipe Sem-Pescoço encostou: O Pernambuco tá te vendendo. Olhei pra ele e ele disse: Dez pacotes de Minister. No teu xadrez tem um interessado, mas também tem gente de fora querendo negócio. No xadrez em frente o Norberto Pipeta. Eles já sacaram que tu dá uns cochilos compridos. Marca o cigarro. O dia que o Pernambuco tiver os pacotes ele te vendeu.
Falei pro Sem-Pescoço: Eu preciso de um estilete. Vou te emprestar o meu punhal, ele disse e foi buscar a arma.
Na hora da janta o Marcondes me ofereceu carne de picadinho: Se tu quiser as batatas pode pegar. Peguei também as batatas. Comi olhando pro Norberto do xadrez da frente.
Depois da janta o Pernambuco puxou assunto: tu tá muito triste, nego. Se abre aí com a gente, diz o que tu tá matusquelando. Levantei vagarosamente e fui pro beliche do Pernambuco. Ele deve ter pensado que eu ia pedir qualquer coisa, cigarro talvez. Dei a primeira porrada de viés e ele caiu de bruços no beliche. Puxei as calças dele pra baixo e meti o punhal na bunda. Uma punhalada em cada nádega. Apertei o pescoço dele no travesseiro. Não grita, eu disse abafado. O Marcondes pulou do beliche, mas eu consegui me desviar e ele bateu a cabeça na parede. Na queda eu já estava no pescoço dele. Não dava pra segurar direito no cabelo. Minha mão não afirmava no pixaim. Meti a ponta do punhal na garganta. Ele não conseguiu soltar o grito inteiro. No final saiu um meio ronco, abafado, junto com o sangue. Fui pro Pernambuco: Põe todas as tuas coisas em cima da cama. Ele levantou e as calças foram parar no tornozelo. Da bunda corriam dois regos de sangue que enlameavam as pernas. Chamei o cara do beliche de cima: Quer ele pra você, perguntei. O cara veio de estilete na mão. Acho que deu umas trinta estocadas. Na barriga, no pescoço, no peito, no pau deve ter dado umas quinze.
Olhei pro Gavião e disse: Aqui, negro filha da puta. Ele ficou de joelhos no beliche, o branco dos olhos se ampliando e o magrinho banguela gritou: ele é meu, só meu. E pegou o punhal da minha mão.

***

Puxei quatro meses de solitária. Eu, o Marreta e o Toninho Anta. Todo dia a minha bóia vinha reforçada. Vinha omelete, linguiça, contra-filé. Até sobremesa de pessego em calda pintou. A gente revezava. Um dia comia o Marreta, outro eu, outro o Toninho Anta. E a gente foi acertando o esquema pra quando saísse dali. Primeiro, gratidão pro pessoal que melhorava a bóia. Pro Chulé, pro Nivaldo, pro Felipe Sem-Pescoço. Pro carcereiro que trazia o rango e as notícias. Um dia ele tinha falado: Encaro esta porra porque tenho que viver. Tenho dois filhos e todo dia de manhã no ônibus fico pensando que posso não voltar mais. Um sacana desses pode me apagar no pátio, no corredor e tá tudo fudido. Que que a patroa vai fazer com a mixaria que eu ganho? Fico até pensando nos meus meninos aqui dentro. Filho de pobre tem que ir pra batalha.
Mandei um recado pro chulé: Espalha pra todo mundo que o nossa amizade é gente minha. O Marreta e o Toninho Anta reforçaram: Nossa também.
No outro dia pintou uma garrafa de Maria-Louca, uma cana de casca de laranja. Forte pra cacete.
***

Eu e o Marreta saímos no mesmo dia. Ele de manhã e eu de tarde. No corredor o pessoal bateu palmas pra mim. No xadrez os caras me receberam de pé. Apertei a mão de um por um. O magrinho banguela me deu os dez pacotes de Minister que tinha guardado. Mandei ele distribuir os cem maços de cigarro pro pessoal. Teve um cara que gritou no fim do corredor: Cara, eu tô na tua. Dê as ordens. Amanhã no pátio, eu disse.

***
O Felipe Sem-Pescoço me deu a notícia: Mandei apagar o ganso que te entregou. É um presente da turma pra ti. O Chulé completou: Esquece a milha que a gente tinha falado. Abracei os dois e o Marreta foi explicando o que a gente tinha combinado:
A primeira coisa que a gente vai ter que quebrar é essa de mulher. Tamos falando com os homens e eles vão deixar a gente se encontrar com o mulheril numa boa. Os caras tão querendo cinco paus por trepada e o pessoal de fora vai ter que entrar com algum pra ajudar. Quem tiver mina faturando não tem problema, quem não tem recebe a ajuda que eu falei. Vai ser no setor de brinquedos. Os guardas e o carcereiro já tão conversados. Cinco paus e tudo bem.
Tem mais: o chefe é que mandou oferecer pra quem é a fim: Três bichas novinhas, com peitinho e tudo, e mais duas garrafas de Maria-Louca por xadrez. Cinquenta paus adiantados. Pra semana já pode fazer a encomenda.












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